Desmistificando frase “João virou Maria”, roda trans coloca todos como humanos
Histórico, evento em centro cultural garante visibilidade e protagonismo trans
Considerado histórico em Campo Grande, pelo número de envolvidos, o evento da Visibilidade Trans, no Centro Cultural José Otávio Guizzo, na noite desta quarta-feira (29), foi um verdadeiro “aulão” sobre identidade de gênero, onde pessoas trans falaram para pessoas trans. De forma didática e participativa, a principal roda de conversa da noite desmistificou a errônea frase de que “João virou Maria” ou vice-e-versa, já que todos nascem humanos e finalizou com um convite ao afeto.
Além do bate papo, a noite contou com a Mostra Transitares, que segue aberta por mais duas semanas, premiações de Direitos Humanos e Cidadania a homens e mulheres trans que se destacam na luta, feira de artesanatos e do movimento nacional Mães Pela Diversidade, além de apresentações e performances.
Apesar de se tratar de um movimento nacional, o Mães pela Diversidade acaba de começar por aqui. Com um trabalho de “mãe para mãe”, Neusa Araújo, que também é coordenadora do Centro de Referência de Direitos Humanos, de prevenção combate à Homofobia, explica que o grupo chegou primeiro a Dourados e em Campo Grande está sendo desenvolvido na Fundação de Cultura do Estado.
“Nós damos apoio às famílias que têm dificuldades de aceitarem seus filhos trans. Por aqui sou conhecida como a mãe dos Homens Trans e desenvolvemos o trabalho com visitas. Para 2020, o planejamento é reunir mais pessoas e estar presente em eventos maiores como a Parada da Diversidade”, explica.
O coordenador da Casa Satine, psicólogo e pedagogo Leonardo Bastos explica que construir um evento como esse, é um papeis da instituição, enquanto Fórum LGBT.
“Nós temos que somar com as pessoas trans e construir um evento que tenha o jeito deles. Então a gente pensou em como fazer e hoje tem três ações acontecendo, como a mostra idealizada por artistas, o espaço de conversa e diálogo de trans pra trans, onde ficamos de lado para ouvi-los, além da premiação de reconhecimento a pessoas trans que lutam pela comunidade e, por fim, a feira de artesanatos. Hoje, para nós é histórico por termos mais de cinco instituições envolvidas e só demonstra que se tem toda essa receptividade para o momento, mostra também o quanto a gente é devedor de garantir espaço para as pessoas trans. Essa é a grande mensagem que a gente quer passar para o dia, que a gente precisa dar mais voz e espaços às pessoas trans, inclusive na condução das nossas entidades e protagonismo da pauta LGBT, que é ampla, para as pessoas trans”, explica.
Uma das participações na roda de conversa foi a da gestora empresarial Cecília Amanayara Cruz da Silva, 21 anos. Mulher trans, Cecília faz questão de ressaltar que o nome “Amanayara” vem do Pataxó Hã Hã Hae, sua origem étnica. Junto à plateia debateu a questão de gênero, já que a discussão é identitária e não biológica, e sobre a importância de desmistificar o relacionamento afetivo e sexual entre homens e mulheres trans.
“Justamente nesse campo que chamam de “transição” pode-se colocar, resumidamente, que nós não nascemos com uma identidade de gênero específica. Nós nascemos humanos e isso os basta. A nossa identidade é uma construção a partir daquilo que a gente conhece, experimenta e vivencia. E eu acredito que a relação afetiva e sexual entre pessoas trans binárias, ou seja, mulheres trans e homens trans, é pouco procurada, justamente, por conta da fetichização e da biologia que coloca o pênis como um órgão masculino. Daí se procura, não um homem, mas um pênis de um homem cisgênero. Ressignificar esse pênis e esse corpo é entender que as mulheres trans e os homens trans conseguem procurar entre si, relação afetivas e sexuais e se relacionar da mesma forma com os órgãos que lhes proporcionam prazer sexual”, frisa.
E Cecília tem propriedade de falar sobre o relacionamento entre pessoas trans binárias, pois é casada com Arthur dos Santos Monterani, de 20 anos, que é um homem trans. “É muito difícil de ver um relacionamento entre homens e mulheres trans, justamente, por um preconceito, transfobia e resistência tanto de algumas mulheres trans quanto de alguns homens trans e também por conta da misoginia que algumas mulheres trans carregam que é o nojo da vagina, do gozo da vagina e dos seios, por se enquadrarem dentro de um corpo feminino. É preciso desmistificar tudo isso. O relacionamento entre pessoas trans é mais leve”, finaliza.
Glauber Portman, artista não-binária, produtora cultural, DJ e responsável pela Mostra Transitares, explicou que a proposta de abrir a exposição junto ao evento Travestir-se, é levar às galerias a população que é tão negligenciada dentro desses espaços.
“Estamos acostumados a ver artistas trans serem tirados de vista. Artistas dentro da galeria são quase inexistentes, na forma midiática, sabemos que eles existem, mas a possibilidade não é dada, então unindo as secretarias e nossos contatos, porque além de trabalhadores da área cultural, nós somos amigos e trabalhamos em outros espaços e em outros eventos, eu convoquei nessa necessidade de fazer com que esses artistas sejam vistos e que ocupem esses espaços, porque não se resolve um problema, se não lhe é dado o acesso. Nos é negado o afeto, atenção, o espaço, o direito, as galerias, as mesas de academia, as mesas do STF, então, a gente veio com essa necessidade de abrir para que nós mesmos possamos ocupar e mostrar que fazemos produções de qualidade absurdas, ricas, produções que não são só bonitas, elas falam de nós, da nossa dor, do nosso afeto, elas de fato são obras políticas, que já que ali não podemos falar da nossa obra, ela tem de estar nitidamente mostrando nós mesmos”, pontua.
Portman ressalta que a mostra também vem com a ideia de gerar revolta e visibilidade ao público, mesmo em Campo Grande, uma cidade que ainda é movimentada pela cultura do gado, que está no topo do ranking de homofobia.
“Estamos numa cidade que se coloca no ranking de coisas ruins que essa sociedade escrota impõe. A exposição é uma proposta de gênero, mesmo, e mostrar tudo que as pessoas viram as costas, mostram o dedo na rua, aquilo que as pessoas julgam como vexaminoso, mostrar o que a burrice e hipocrisia não os deixam enxergar. Porque esse corpo tem uma dor, uma história, um prazer e que é necessário falar disso já que ninguém fala. Esse espaço eu conquistei e também será o espaço de todas as minhas manas, manos. Juntar cada pedacinho que tem aqui forma uma obra muito maior. Hoje esse evento eu resumo como revolução, transgressão, porque o trans é revolucionário, é ir além, o trans é modificar o espaço, então um corpo que as pessoas julgam como diferente, não há ato mais revolucionário que esse. Não tem ato mais revolucionário do que o de se mostrar, porque enfrentar todas as opressões e agressões que a gente enfrenta é o ato mais revolucionário que a gente tem, que é um ato de coragem e que as vezes nos expõe a perigos, porque eu como artista e, apesar de nova, já tive quatro armas na cara, já fui arrastada, a polícia já me pegou dentro de uma instituição pública federal e universitária, já fui agredido coletivamente, em frente de igreja, e isso foram coisas que me deram mais força ainda, coisas que fizeram muitas manas e amigos sofrerem e desistirem da própria vida. O ato revolucionário está nisso, ver essa população unida e tendo espaço para mostrar sua obra e seu corpo, porque trans é isso, puramente revolução”, finaliza Portman.
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