Em universidade onde o pai foi assassinado, Cristiano virou doutor
Da dor ao êxtase, o espaço se construiu como local em que ele brincou, mas “viu” o pai morrer
“É um misto de emoções. Ao mesmo tempo que é um lugar de comemoração, também continua causando o sentimento de tristeza, de revolta.” Mais do que ter mergulhado na vida acadêmica, Cristiano Figueiredo dos Santos, de 37 anos, viveu a universidade desde criança. Da dor ao êxtase, o espaço se construiu como local em que ele brincou, “viu” o pai morrer e que presenciou suas transformações até se tornar doutor.
Sem definir um sentimento que prevaleça, o professor de Biologia narra que pensar na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) é também evocar vínculos de toda uma história.
Fazendo um apanhado geral, ele conta que a atmosfera conserva os momentos mais sombrios que dominaram seus pensamentos quando o pai foi assassinado no estacionamento da universidade, assim como as vitórias ao conquistar seus diplomas.
Em uma linha do tempo composta por muita luta, Cristiano explica que conheceu a universidade ainda durante a infância. Aos finais de semana, ele e seus irmãos eram levados pelo pai, Waldomiro José dos Santos, para passar o tempo no local em que era seu trabalho.
“Me lembro dos prédios, de como aquele lugar era completamente diferente. A gente brincava, subia em árvore, coisa de criança mesmo. Tenho até uma cicatriz no pé, fiz brincando no lugar que hoje é a faculdade de Medicina Veterinária”, diz.
Vigilante, Waldomiro trabalhou por muitos anos na UFMS até que, conforme o filho relembra, teve a vida interrompida durante seu expediente. Foi assim que, além de conservar as cicatrizes adquiridas durante as brincadeiras de criança na universidade, Cristiano teve a vida marcada por uma dor que segue até hoje.
Foi 8 dias antes do meu aniversário. Ele estava em serviço, em ronda com um companheiro, quando viu um carro parado no estacionamento do Moreninho. Ele disse para o colega que ia avisar sobre não poder ficar parado ali e que depois iria tomar um café."
De acordo com Cristiano, o pai seguiu até o carro e, durante a abordagem, percebeu que um homem estava no veículo com uma travesti. “Ele disse que não poderiam ficar ali, solicitou uma identificação e o cara falou que ia pegar. O que aconteceu é que, ao invés de pegar os documentos, ele sacou uma arma e deu vários tiros à queima-roupa.”
Sem resistir aos ferimentos, Waldomiro morreu no local enquanto o atirador fugiu e nunca foi identificado. “A travesti também ficou abandonada lá e contou para a polícia que o homem era um militar. Lembro de estar em casa, já de noite, quando um dos amigos dele foi até nós e bateu na porta do meu quarto chamando pelo meu irmão. Quando levantei e abri a porta, já ouvi minha mãe chorando”, conta.
Novas cicatrizes e histórias
Na época, Cristiano tinha 14 anos e viu a vida ser completamente alterada. Os espaços da universidade ganharam novos significados, assim como sua própria rotina dentro de casa e na escola.
Minha mãe se viu tendo que lidar com muita coisa, além de lidar com toda a tragédia e pensar nos filhos, teve que conseguir renda. Tudo foi uma mudança brusca, nós tivemos uma quebra de ritmo completa."
Ele relembra que, por ser o filho mais velho, o peso da responsabilidade também surgiu para si. Além de precisar entender tudo o que estava acontecendo, acabou internalizando e reprimindo sentimentos que foram despejados sobre sua cabeça durante aqueles momentos.
Nos anos seguintes, Cristiano continuou passando pelas ruas laterais da universidade e, do lado de fora, imaginava se iria retornar ao espaço para estudar. “Eu sempre ficava imaginando e, quando fiz o vestibular, passei em Biologia. Que alegria, foi um momento muito alegre, de superação, algo que desejei. Mas acho que não teve um dia em que fiquei sem pensar em como seria se meu pai estivesse lá.”
Com a graduação, o professor conta que construiu novas histórias entre os bancos e paredes da universidade. Além do histórico com o pai, aprendeu que gostava de pensar a educação, a representatividade e sua própria trajetória.
Quando terminou o curso de Biologia, decidiu ingressar no mestrado em Dourados, mas anos depois, retornou para UFMS e se viu mais uma vez tendo aquela universidade como cenário da vida durante o doutorado.
“A UFMS traz esse ponto muito particular, tudo faz parte da minha história. Tem sim essa dor, a morte, a tragédia, mas também a minha vitória, que é também a de todos que vibraram por mim. Na universidade, várias pessoas, amigos do meu pai, me deram essa chance de crescer, me ajudaram.”
Marcas, lembranças e conquistas
Já não existente, uma sala da universidade recebeu o nome do pai de Cristiano em forma de homenagem. Através do sindicato da categoria, Waldomiro foi lembrado no espaço dos vigilantes com mais uma marca.
Hoje, o espaço foi desfeito, mas a lembrança da conquista continua e, neste ano, mais uma foi construída. Depois de concluir o doutorado em 2021, Cristiano retornou para a UFMS e buscou seu diploma.
Para marcar o momento, resolveu tirar uma foto com o documento e, só depois do registro feito, percebeu que quem havia se disposto a ajudar no momento era um colega de seu pai.
“Quem tirou essa foto foi um amigo segurança do meu pai. Quando ele tirou a máscara, o reconheci. Foi mais um momento que vai ficar na minha memória, de como todo mundo participou da minha vida.”
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