Na casa onde Lourival viveu, família se despede com velório reservado
Corpo de Lourival Bezerra de Sá, que faleceu aos 78 anos, ficou 5 meses no Imol proibido de ser enterrado, por diferenças entre corpo e identidade
Os cinco meses de impasse e espera em torno da figura de Lourival Bezerra de Sá, que faleceu aos 78 anos em Campo Grande, chegam ao fim. Neste sábado (16), família e vizinhos despedem-se do idoso, velado na casa onde viveu, no bairro Vila Popular. O corpo de Lourival ficou cinco meses no Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal) por uma confusão com sua identidade.
Na manhã deste sábado, ainda assim, a “batalha” sobre a narrativa de quem foi, de fato, Lourival, ficou para trás. Um velório íntimo, com a presença de aproximadamente dez pessoas, entre familiares e vizinhos, ocorre na varanda da casa da família, com portão aberto, caixão fechado e cadeiras.
Lourival demorou a ser enterrado porque criou-se, após a sua morte, um debate ao redor de sua existência quanto ao seu gênero. Em outubro do ano passado, quando faleceu em decorrência de um infarto, descobriu-se que o idoso, que viveu por boa parte da vida com identidade masculina, tinha genitália feminina e escondia os seios com uma faixa.
A ausência do registro original de Lourival virou investigação policial que, durante meses, tentou, sem sucesso, descobrir o nome de registro do idoso e a origem do nome adotado. Em fevereiro, a delegada responsável pelo caso, Christiane Grossi, da 7ª Delegacia de Polícia de Campo Grande, disse que várias pessoas de todo o país ligaram pensando ter vínculo familiar com Lourival, mas que nenhum caso se confirmou.
É dessa forma, em paz, mas cercado de mistério, que Lourival vai, de fato, “descansar”. Na impossibilidade de ser enterrado por impedimento jurídico, o caso gerou revolta e repercussão nacional, especialmente nos meios que militam e debatem questões de gênero e sexualidade.
Em entrevista o Campo Grande News, o pesquisador e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul),Tiago Duque, comentou o assunto e defendeu que ainda que não se possa impor a denominação “transgênero” à existência de Lourival –que não vive para reivindica-la. Para ele, o idoso viveu como homem e é assim que deve ser identificado.
“Mostra como aquilo que tem sido registrado da história dos homens trans tem feito a gente pensar o quanto precisa ser estudado, compreendido. A diferença é que esse personagem não está vivo para assumir uma identidade trans, mas a identidade pública dele era de homem”, disse.
Pedido judicial - A Aliança Nacional LGBTI+ pediu ao Ministério Público do Estado o registro civil tardio de nascimento e gênero de Lourival. No MP, o pedido foi arquivado, mas o documento, enviado também à Defensoria Pública, impulsionou o pedido judicial que culminou no velório que ocorre neste sábado.
A entidade justificou o pedido ao dizer que a questão do gênero de Lourival já foi resolvida quando o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) julgou por unanimidade a desnecessidade da cirurgia de transgenitalização –cirurgia de mudança de sexo– para que seja necessário a alteração de registro.
A Defensoria ajuizou o pedido de sepultamento do corpo, representando a família de Lourival. O juiz Carlos Alberto Garcete de Almeida, da 1ª Vara do Tribunal do Júri, acatou o pedido e determinou o sepultamento. Além disso, a decisão afirma que sejam recolhidas as impressões digitais e o material genético de Lourival, feitas fotografias do corpo, e caso ainda não tenha, seja expedida o registro da certidão de óbito dele.
Depois do velório, o curioso caso chega de fato, ao fim. Lourival será enterrado no cemitério Monte das Oliveiras, em Campo Grande, onde seu corpo e sua identidade devem ficar a partir deste sábado.