Na luta contra a automutilação, feridas de Karen vão parar nas redes
Estudande de 22 anos tem usado as redes sociais para falar sobre automutilação e como esse hábito afetou sua juventude
“Corto a faixada, AS PERNAS, A BARRIGA, OS PULSOS, CORTO, CORTO, CORTO, CORTO, CORTO, mas o sentimento não vai embora, bebo água, as não lágrimas não vêm, mais um filete, abro as cicatrizes com as mãos e vejo o sangue se esvair, com isso anos de dor, mas o gosto amargo na garganta ainda continua, guardo a faca, lavo as feridas e me deito, mais um dia viva”.
Esse é o trecho de um poema escrito pela jovem Ethieny Karen. Geralmente usado para descrever sentimentos subjetivos e sensações, os poemas, ou o hábito da escrita como um todo, são formas de expressão, de desabafo.
Mas há algo de muito objetivo, literal, nas frases da Karen. Esse pequeno poema, segundo ela, é uma tentativa de colocar no papel as sensações de uma vida atravessada pelo ímpeto da automutilação.
A estudante convive com o hábito de se lesionar, se cortar, desde os 11 anos de idade. Agora, aos 22, inicia um processo de expor suas dores para tentar ajudar outras pessoas.
“Eu comecei a me automutilar quando eu tinha 11 anos, isso porque eu não soube lidar com o falecimento do meu pai e com o abuso sexual e que eu vivi quando era um pouco mais nova. Meu pai faleceu quando tinha nove anos e eu fui abusada sexualmente aos 10”, explica Karen.
Foi nessa idade que Karen encontrou nas redes sociais, comunidades de meninas que falavam sobre transtornos como bulimia e anorexia, também presentes na vida da estudante.
“A automutilação veio muito junto com a bulimia. Então quando eu me sentia mal, me sentia frustrada, eu me cortava como forma de punição, eu não pensava em suicídio na época. Era uma forma de ver aquela punição no meu corpo”.
A partir daí, os cortes nos braços, pernas, barriga, nos pés, passaram a ser uma resposta às frustrações da adolescência aliado a diversos outros fatores que agravaram os traumas que deram início ao hábito.
“No começo era pouco, conforme foi ficando mais velha era uma vez por semana, teve época de ser todo dia, aí às vezes melhorava. Dependia muito de como estava a minha situação, se eu me sentia mais sozinha”.
Segundo a psicóloga Avany Cardoso Leal, que já publicou um artigo sobre o assunto, a automutilação, no caso de jovens, está diretamente relacionada ao fato de não saberem lidar com sentimento e frustrações.
“As principais causas da automutilação são ligadas ao sofrimento psíquico. A gente percebe que os jovens têm dificuldade de lidar com uma série de frustrações e muitas vezes a automutilação é uma forma de concretizar aquele sofrimento”.
A especialista afirma que é preciso encaminhar a pessoa que está passando por essa situação ao psicólogo e esse avaliar a necessidade de encaminhar para um psiquiatra.
“Geralmente o tratamento é a psicoterapia, mas depende muito do contexto e da idade. Ali vamos poder ajudar a pessoa a lidar com seus afetos. Mas muitos também precisam de tratamento medicamentoso, vai da avaliação do psiquiatra”.
E esse é o caso de Karen, que lançou mão de remédios para ajudar nesse árduo caminho. “O uso de remédios e, principalmente a terapia, isso tem me ajudado muito. E eu sentia muita vergonha do meu corpo justamente por causa disso (das lesões). E hoje em dia com meu peso, com minha aparência, com meu cabelo, e pelo fato de eu ser uma mulher negra, e todo o racismo que sofri desde pequena, a terapia tem me ajudado muito, junto com meus amigos, toda uma rede de apoio, que é muito importante”.
É uma luta contínua, diz karen, que mesmo conseguindo falar sobre o assunto, expor nas redes sociais, afirma que não se livrou da vontade de se machucar às vezes. Inclusive, nos últimos dois anos, passou por fases bem complicadas.
“Em 2018 foi a primeira vez que eu tentei o suicídio. Desde então eu venho tentando mudar alguns hábitos mentais. Eu ainda tenho problema de automutilação, não é uma coisa que eu consiga simplesmente parar, foram anos e a nos com esse hábito nocivo”.
Essa é a segunda matéria que o Lado B escreve sobre Karen. Na primeira, em maio, mostramos que ela fez sucesso ao gravar um vídeo para o TikTok falando sobre os pontos turísticos de Campo Grande de um jeito bem engraçado. Isso mostra que o sofrimento pode estar na vida de qualquer um, por que mais que não pareça.
“Finjo felicidade, entre os meus, sou a mais engraçada, a mais sem problemas”, diz outro trecho do poema de Karen.
Donald Winnicott, psicanalista da infância e juventude, diz que toda criança gosta de brincar de se esconder, mas gosta mais ainda quando é encontrada, quando não é esquecida onde se escondeu.
Karen tem usado as redes sociais para falar sobre o assunto. Acesse o Instragram dela nesse link e confira.
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