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Comportamento

No salão de beleza, conversa com clientes revela realidade sombria da violência

Há um ano, projeto "Mãos emPENHAdas" capacita profissionais de beleza para encorajarem as mulheres a denunciarem seus agressores

Tatiana Marin | 21/02/2019 09:01
Programa Mãos emPENHAdas Contra a Violência foca em salões de beleza, onde as mulheres muitas vezes acabam desabafando suas histórias de agressões. (Foto: Paulo Francis)
Programa Mãos emPENHAdas Contra a Violência foca em salões de beleza, onde as mulheres muitas vezes acabam desabafando suas histórias de agressões. (Foto: Paulo Francis)

“Eu sou vítima de violência doméstica”, conta a cliente de um salão de beleza localizado em área nobre de Campo Grande. O caso vem à tona enquanto um dos profissionais do centro de estética fala sobre o programa Mãos emPENHAdas contra a Violência. O lugar onde mulheres buscam autoestima, é também onde elas acabam desabafando uma pavorosa realidade: a violência doméstica.

"Sou vítima de violência doméstica", disse a corretora de imóveis. (Foto: Paulo Francis)
"Sou vítima de violência doméstica", disse a corretora de imóveis. (Foto: Paulo Francis)

A corretora de imóveis de 47 anos diz que sofreu agressões por dois anos e, finalmente, em janeiro de 2017, tomou coragem de denunciar as agressões do marido, depois que ele agrediu também seu filho que tinha 11 anos na época. “Não é só violência física, é violência verbal, psicológica, patrimonial - porque ele me limitava de tudo -, me afastou da família e eu acabei isolada e triste”, descreve. “Eu não denunciava porque tinha vergonha. Mas hoje não tenho vergonha, ninguém deve ter vergonha”, enfatiza.

Quando aconteceu com ela, o programa Mãos emPENHAdas ainda não existia e hoje ela vê a importância desse instrumento. “É uma medida ótima, pois é um lugar bem frequentado pelas mulheres. A gente acaba se tornando amigos dos profissionais. Facilita a troca de informação”, aprova.

O programa foi idealizado por Jacqueline Machado, juíza da 3ª Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que também responde pela Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul). O projeto, que está prestes a completar um ano, realiza a capacitação de profissionais da beleza para prevenção da violência contra a mulher.

A juíza Jacqueline Machado percebeu que os salões propiciam ambiente para as mulheres contem seus problemas. (Foto: Paulo Francis)
A juíza Jacqueline Machado percebeu que os salões propiciam ambiente para as mulheres contem seus problemas. (Foto: Paulo Francis)

A ideia veio da percepção de que nos salões de beleza as mulheres acabam se permitindo adentrar em assuntos diversos e podem até desabafar com profissionais.

“Há vários casos já relatados sobre essa questão, de profissionais terem informado e encaminhado para a delegacia e, também, dos próprios profissionais que relatam”, conta a magistrada. Entretanto ela ressalta que é impossível quantificar o resultado, já que muitas chegaram à Casa da Mulher Brasileira com base no contato apenas com o material disponibilizado nos salões.

Desde a primeira capacitação, que aconteceu em março de 2018, o programa já colhe resultados, está sendo empregado em outros estados e recebeu reconhecimentos. Em Campo Grande o programa fez parceria com 43 estabelecimentos e capacitou 215 profissionais. O potencial de capilarização das informações é grande e imensurável, já que segundo levantamento cada profissional atende em média 1000 clientes por mês e estas também podem agir como disseminadoras.

Além da conversa, materiais também levam informações sobre violência doméstica às mulheres. (Foto: Paulo Francis)
Além da conversa, materiais também levam informações sobre violência doméstica às mulheres. (Foto: Paulo Francis)

Mais de 3.500 pessoas tiveram acesso aos materiais, sendo a maioria por meio de busca espontânea. Enquanto nos estabelecimentos, pelo menos 56 pessoas relataram estarem sofrendo ou terem sofrido violência doméstica. Inclusive, um profissional chegou a acompanhar uma cliente à Casa da Mulher Brasileira para denunciar agressão e solicitar Medidas Protetivas.

Capacitação - Os profissionais de beleza recebem orientações sobre como proceder ao perceberem que alguma cliente - e até outros profissionais - são vítimas de violência doméstica. Além disso, eles são treinados em como fazer a abordagem de forma menos invasiva possível para que a cliente não se afaste, o que acarreta em ela deixar de receber as informações e ser fortalecida.

“Se a mulher chega a falar de seus problemas para o profissional, é porque o desabafo se esgotou com a família e próximos, ela está desacreditada”, avalia Vanessa Vieira, assistente social da Coordenadoria da Mulher. Segundo ela, um dos pontos “é capacitar os profissionais para que entendam o que é violência e porque a mulher permanece na relação. Às vezes fica difícil ajudar porque tem o estigma, entender porque ela fala que rompe depois volta”, afirma.

Profissionais podem agir encorajando as mulheres a denunciarem seus agressores. (Foto: Paulo Francis)
Profissionais podem agir encorajando as mulheres a denunciarem seus agressores. (Foto: Paulo Francis)

Após o treinamento, o contato com os profissionais da beleza continua por meio de contatos periódicos, “incentivando-os, encorajando-os e sanando as dúvidas que possam surgir, além da reposição de materiais e o resultado obtidos nos salões”, diz trecho do documento encaminhado pela Coordenadoria da Mulher aos Campo Grande News.

A juíza Jacqueline Machado afirma que a estratégia é prosseguir com a infiltração de informações com o objetivo de prevenir a violência doméstica e fortalecer as mulheres. Segundo a Coordenadoria, diversas pessoas expressaram surpresa com algumas das condutas apresentadas nos materiais informativos enquadradas como violência psicológica, tais como humilhação, intimidação e manipulação, bem como a existência e tipificação da violência patrimonial.

Jacqueline afirma que neste período em que o programa está em vigência, o balanço é muito positivo. “O projeto foi uma surpresa pela forma como caiu no gosto, tanto no meio jurídico como dos profissionais de beleza. Eles veem a importância, que é uma forma da informação ser disseminada”, comenta.

Nos salões - Proprietários de salões confirmam a avaliação da magistrada. “A gente acha que sabe, mas viu que sabe muito pouco”, confessa Renata Gabas, proprietária do salão Jacques Janine, o último a receber a capacitação pela Coordenadoria da Mulher. “Normalmente as clientes já são de muito tempo, vêm toda semana, tem intimidade com os profissionais”, explica.

“Antes, se a cliente falava, o profissional não se manifestava. A gente não tinha essa orientação. Agora vão ter a delicadeza de falar sobre o assunto, com sutileza, sem ser invasivos. Eles têm agora até mais bagagem para falar isso com propriedade”, completa Renata.

Emmanuel Alvarez, proprietário do Salon 7 Coiffeur, um dos primeiros a receber a capacitação. (Foto: Paulo Francis)
Emmanuel Alvarez, proprietário do Salon 7 Coiffeur, um dos primeiros a receber a capacitação. (Foto: Paulo Francis)

Emmanuel Alvares, proprietário do Salon 7 Coiffeur, relata que “já detectava algumas coisas e depois do curso ficou ainda mais fácil perceber. Nos ensinou a encorajar as mulheres a denunciar o agressor”, avalia. Ainda, ele diz que algumas são de conversar, mas aquelas que não dão abertura, a abordagem é feita com os materiais.

O programa - O Mãos emPENHAdas recebeu reconhecimento nacional com o Prêmio Direitos Humanos 2018, na categoria Mulher, concedido pelo Governo Federal. O reconhecimento à boa prática também veio com a implantação do programa no Pará e no Piauí. Em março, a juiza Jacqueline deve ir ao Rio de Janeiro, onde foi convidada a falar sobre as boas práticas, para essa possibilidade de implantação. O Estado de Goiás também demonstrou interesse no projeto. Além disso, as capacitações foram estendidas para cidades do interior do Estado, como Nova Andradina, Batayporã e Paranaíba.

A coordenadora da Mulher também adianta que já há conversas iniciais com o Senac de Campo Grande para que seja incluída uma disciplina nos cursos profissionalizantes da área da beleza.

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