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Comportamento

Quando Cássio “saiu do armário” da deficiência, provou ao mundo que vive

Muitas pessoas se surpreendem quando ouvem falar em cego ou pessoa com baixa visão que se diverte, toma cerveja e vai ao motel

Thailla Torres | 03/02/2020 08:03
Cássio fala sem tabus da vida de uma pessoa com deficiência visual que vai além das limitações. (Foto: Paulo Francis)
Cássio fala sem tabus da vida de uma pessoa com deficiência visual que vai além das limitações. (Foto: Paulo Francis)

As campanhas de acessibilidade e inclusão às pessoas com deficiência costumam servir de conscientização para que todos tenham seus direitos garantidos, mas geralmente essa consciência cessa logo que um cego ou qualquer outra pessoa com deficiência faz o que quer aonde maioria não possui qualquer limitação. Basta Cássio subir as escadas de um bar na Avenida Afonso Pena, sentar à mesa, pedir uma cerveja e tomar o primeiro gole para se constatar inúmeros olhares. Não de reprovação, mas, aparentemente, de dúvida, de surpresa ou indagação do tipo: o que vai acontecer se ele ficar embriagado?

Poucas pessoas teriam coragem de se levantar e perguntar ao cego como ele se vira quando “fica de fogo” se, nem a visão, ele tem como guia. Na cabeça de muitos, esse tipo de questionamento “soa preconceituoso”. De fato, soaria se a pergunta fosse acrescida do pensamento de que cego não pode beber ou passar do limites, mas se é só uma curiosidade, vinda de quem, às vezes, não convive ou desconhece o universo de uma pessoa com deficiência, a pergunta é tida, pelo menos por Cássio, como uma das mais naturais de ser respondida. É, inclusive, o pontapé para um bate-papo divertido e sem dose de tabu.

O advogado bateu um papo franco com o Lado B durante uma conversa de bar. (Foto: Paulo Francis)
O advogado bateu um papo franco com o Lado B durante uma conversa de bar. (Foto: Paulo Francis)

Foi pensando nessa e outras curiosidades que o Lado B convidou Cássio Roberto Gomes Silva, de 24 anos, advogado e suplente do Conselho Tutelar de Campo Grande, para uma entrevista regada a cerveja e risadas. Sem receios, ele falou sobre questões cotidianas que vão dos desafios às conquistas. Mais do que isso, ressaltou como ainda é difícil ganhar a compreensão de todos para o fato de que a pessoa com deficiência vive e, mesmo com limitações, ela merece viver.

Cássio nasceu com amaurose congênita de Leber, também conhecida como ACL, uma doença degenerativa rara que provoca alterações na retina, gerando perda de visão desde o nascimento. Na infância ele chegou a ter 20% de acuidade visual (capacidade do olho para identificar o contorno e a forma dos objetos). Hoje, ele possui apenas 3%. “Conforme avança minha patologia eu vou perdendo a visão das extremidades para o centro, ou seja, estou perdendo minha visão periférica e restando somente a visão central. Se eu olhar nos olhos de uma pessoa, eu só enxergo os olhos, nada mais”.

O avanço da perda da visão na adolescência foi um dos momentos mais difíceis, lembra o advogado. “Eu era um menino popular na escola, tinha muitos amigos e jogava futebol. Nessa época, eu comecei a perder a visão e fui sentindo um afastamento das pessoas porque eu não interagia mais do mesmo jeito”.

A mudança de escola provocou um afastamento ainda maior das pessoas. “Eu estava naquela crise existencial por ter perdido os meus amigos e não quis me relacionar com outras pessoas. Fiquei durante algum tempo na sombra da minha irmã, que estudava na mesma sala. E isso era péssimo, chegou uma época em que eu não queria mais ir para a escola, tive depressão”.

Sincero, ele fala do passado, da autoaceitação, dos próprios preconceitos e como "saiu do armário". (Foto: Paulo Francis)
Sincero, ele fala do passado, da autoaceitação, dos próprios preconceitos e como "saiu do armário". (Foto: Paulo Francis)

Na época, Cássio ainda não usava bengala, andava sempre com ajuda de alguém da família ou a namorada. Mas a chegada na faculdade foi fundamental para o processo de aceitação. “Eu fui estudar em uma faculdade particular e decidi que usaria a bengala. Foi assim que eu comecei a usar e assumi minha deficiência para o Brasil, ou seja, eu sai do armário, e isso foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida”.

Cássio também dá crédito à família. “A família faz total diferença no processo de compreensão e aceitação de qualquer deficiência. Minha mãe, por exemplo, sempre disse que eu poderia fazer tudo, talvez, de uma forma diferente, mas que eu tinha o direito de viver, e isso me ajudou muito, me tornou o homem que sou hoje”.

Como o mundo me olha – Um jovem forte, comunicativo e sorridente. Esse é o Cássio que a gente enxerga durante o bate-papo na mesa, do tipo que ouve de tudo e não tem medo de falar o que pensa. Isso faz com que ele lide de maneira mais sensata com parte do mundo que ainda enxerga pessoas com deficiência “como coitadas”, diz. “Por isso, sou um homem engajado não só com a deficiência visual, mas com outras deficiências, porque sinto que uma pessoa com deficiência auditiva ou uma mãe que tem filho com deficiência intelectual sofre muito nesse mundo. E sinto que há muitas questões que precisam ser vistas e melhoradas para, de fato, termos respeito e inclusão”, afirma.

Com bom humor, Cássio diz que a se intenção for falar de um cego ou baixa visão é melhor não falar perto. “As pessoas acham que eu não escuto, mas ouço de tudo. Os comentários traduzem o olhar de pena”.

Entre as frases que ele mais escuta nas ruas estão: “Nossa, tão lindo, coitado, né?”, “Nossa que cego bonito, pena que é cego”, “Coitadinho” ou “Nossa, como você é bonitinho”.

“Essas frases demonstram o sentimento de pena das pessoas em relação a minha deficiência e também a mania de infantilização da pessoa com deficiência. Ninguém para na rua, segura a bochecha de um adulto e fala que ele é bonitinho, ou seja, não é necessário fazer isso com alguém que não enxerga”, comenta.

A mania de superestimar o que vem de fora também incomoda, diz ele. “O Cássio é um super-herói ou, nossa, você é um exemplo de superação. Essas afirmações mostram que as pessoas querem romantizar a deficiência. Eu não enxergar é só um detalhe na minha vida, mas as pessoas não veem assim”.

Sem tabus, ele conta como aprendeu lidar com preconceitos e com a vida dos amigos que enxergam. (Foto: Paulo Francisco)
Sem tabus, ele conta como aprendeu lidar com preconceitos e com a vida dos amigos que enxergam. (Foto: Paulo Francisco)

A vivência que choca – Quando Cássio chega ao bar, ele brinca que as pessoas “quase quebram o pescoço” tentando enxergar. “Elas ficam um pouco chocadas de ver alguém que não enxerga ou enxerga pouco curtindo em um bar. Aliás, eu vivo levando meus amigos cegos para o bar. As pessoas ficam em choque quando olham um monte de cego saindo do carro”, ri.

Para o advogado, a melhor solução para o problema é falar do assunto. “Cego bebe, cego vai para a balada, cego vai ao motel, cego paquera, com algumas diferenças, claro, mas ele pode fazer tudo isso”, afirma.

Questionado se é possível saber quando há o interesse de alguma mulher na balada, ele cai na risada. “Infelizmente não, eu tenho que esperar elas chegarem em mim, ou os amigos me falam””, diz.

Nessa hora ele destaca a necessidade de falar da solidão do homem e da mulher com deficiência visual. “Isso é algo que deve ser discutido com mais naturalidade. Eu sei que, às vezes, isso não é fácil para um homem. Tem um ego envolvido na história. Mas, a dificuldade, acaba fazendo com que muitos cegos não se relacionem com ninguém. A solidão do homem ou da mulher com deficiência visual é algo muito presente, infelizmente”.

Cássio diz que já ficou com mulheres cegas, mas sempre namorou pessoas que enxergam. “Não é fácil, afinal, são dois mundos diferentes, e a falta da visão prejudica a interação social. Por isso, é preciso conversar sobre o assunto, ouvir a parceira, entender e falar sobre os dois mundos”.

O difícil, segundo ele, é ter paciência com quem se aproveita da deficiência. “Na balada, quando eu namorava, tinha caras que ficavam assediando minha namorada por saberem que eu não enxergava. Isso não é justo”, lembra.

Além disso, Cássio ama sair com os amigos, dançar música sertaneja, ir para balada, viajar e curtir a vida. Mesmo em meio a uma sociedade que ainda mantém preconceitos e possui pouco conhecimento a respeito da deficiência visual, ele diz que já passou da hora de negar a própria capacidade de viver. “Hoje eu sou um homem que sei o que quero, é claro que muitas pessoas com deficiência não têm esse mesmo pensamento porque não tiveram as mesmas oportunidades. E acredito que a família é fundamental nesse processo de auto aceitação. Não é fácil viver em um mundo diferente, mas não é impossível. A gente só precisa falar sobre ele, levar conhecimento, mas, de um jeito simples, natural, sem tabus. Deficiência não é só falar de acessibilidade. É falar da capacidade de sorrir para a vida, de ter amigos, de ser feliz, mesmo com as nossas limitações”.

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Bengala é que mais chama atenção quando Cássio chega à balada. (Foto: Paulo Francis)
Bengala é que mais chama atenção quando Cássio chega à balada. (Foto: Paulo Francis)
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