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Comportamento

Rafael era seminarista, mas aos 34 anos doou todas as bíblias

Thailla Torres | 22/07/2019 08:02
Professor de Filosofia, Rafael explic como deixou a igreja. (Foto: Marina Pacheco)
Professor de Filosofia, Rafael explic como deixou a igreja. (Foto: Marina Pacheco)

O campo-grandense Rafael Eliziário Vieira, de 34 anos é professor e gosta dizer o quanto é um profissional versátil. Além da Filosofia, ele exerce outras funções como corretor de imóveis, massoterapeuta, vendedor e motorista de aplicativo. Mas um detalhe chamou atenção nas redes sociais na última semana quando ele publicou o seu interesse em doar as próprias bíblias. Caso ninguém buscasse, ele brincou que acenderia uma churrasqueira com os objetos. O apelo foi para não deixar que os livros ganhassem um novo destino após ter deixado a igreja. E sobre essa mudança nos últimos tempos, Rafael conta no Voz da Experiência como foi deixar de lado o catolicismo. 

Ele já foi seminarista. (Foto: Arquivo Pessoal)
Ele já foi seminarista. (Foto: Arquivo Pessoal)

Desde minha infância, sempre fui muito ligado à religiosidade. Na região onde fui criado, sempre tive forte incentivo de minha mãe para participar de grupos de jovens na igreja. Aos 17 anos, fui convidado para ingressar no seminário, pois, notavam em mim, vocação para o sacerdócio católico romano. Fiz todo acompanhamento e aos 18 anos ingressei no seminário diocesano.

No seminário aprendi muitas coisas interessantes, como conviver em grupo e em sociedade. Ingressei na faculdade de filosofia, fazia pastoral em Corguinho, município próximo à Campo Grande, onde fiz inúmeros amigos e na qual tenho saudades da ótima convivência fraterna. Estudava Italiano no seminário, tínhamos aulas de etiqueta, de liturgia, de bíblia, encontros de terapia em grupo com uma psicóloga, acompanhamento personalizado sempre visando a formação pessoal e cristã.

Existiam Problemas? Muitos, afinal todo lugar tem! Onde há pessoas há problemas na convivência humana, contudo a convivência fraterna e a visão humana de aprender com os erros eram presentes nos momentos formativos. Terminei a faculdade de filosofia, fui aconselhado por meu diretor espiritual a dar um tempo. Acatei com amor. Conversei com o arcebispo da época, que não mediu esforços para que eu fosse feliz em minhas decisões, embora sempre deixava claro que ele queria me ordenar sacerdote.

Durante o tempo de estudos filosóficos, tive vários conflitos pessoais e sociais, principalmente analisando questões de injustiças, pois meu anseio era mudar as realidades de pessoas que estavam em situação de fome e pobreza extrema, sempre tive desejo por justiça social, igualdade, divisão de renda igualitária, condições de vida digna para todos, inclusive para os mais pobres e humildes, afinal nunca fui rico e vim de uma família humilde. Ao deixar o seminário, aconselhado por meus superiores, fui fazer uma parte da faculdade de teologia como leigo, mas não senti desejo de continuar.

Hoje, depois de muito estudo e observação, ele decidiu seguir novos caminhos. (Foto: Marina Pacheco)
Hoje, depois de muito estudo e observação, ele decidiu seguir novos caminhos. (Foto: Marina Pacheco)

Fui percebendo ao longo do tempo, que haviam muitas contradições em questões religiosas e morais. Claro, não sou perfeito, tenho meus erros, mas detesto fundamentalismo religioso. Detesto ver pessoas sendo julgadas por suas opções diversas e suas condições econômicas. Comecei a conviver além dos padres, com pastores e demais líderes religiosos, alguns muito humanos, outros muito conservadores e extremamente desumanos. Fui percebendo que muitos usavam a religião e os fundamentos bíblicos, para benéficos próprios e de suas instituições. Até tentei ir em uma igreja protestante, mas me vi um peixe fora d’agua.

Peguei-me pensando nos fundamentalismo, durante certas pregações. “É pecado, está escrito”. “Tem que devolver o dízimo, está escrito”. Está escrito, tem que fazer? Eu me questionava. Um dia questionei um pastor: O senhor peca? Ele me respondeu: Sim, claro! O senhor já pecou por olhar alguém com malícia, por fazer algo errado com as mãos? Ele respondeu: Sim, claro, quem não peca, né? Eu continuei: Está escrito na bíblia, em Mateus 5: “Se o teu olho direito te leva a pecar, arranca-o e lança-o fora de ti; pois te é mais proveitoso perder um dos teus membros do que todo o teu corpo ser lançado no inferno. E, se tua mão direita te fizer pecar, corta-a e atira-a para longe de ti; pois te é melhor que um dos teus membros se perca do que todo o teu corpo seja lançado no inferno”. Continuei, por que você não arranca teus olhos e corta tua mão? Ele me respondeu sorrindo: Rapaz, não precisa arrancar ou cortar, basta desviar as ações. Mas eu continuei: mas não está escrito corta? Então, quando lhe convém o senhor cobra o que está escrito, mas quando não lhe convém, o senhor muda o sentido do que está escrito? Enfim, essa foi a primeira de muitas indagações que eu tive acerca das contradições no âmbito religioso e de como as pessoas usam a fé alheia para impor moralismos, e usurpar da fé alheia para fins econômicos.

Outra situação que me deixou reflexivo foi ver um grande número de padres, pastores e demais lideres religiosos apoiando regimes políticos ditatoriais, autoritários e antidemocráticos. Vi inúmeros religiosos defendendo com unhas e dentes a volta do regime militar, que torturou, matou e perseguiu inúmeras pessoas (inclusive cristões), e, vi, os mesmos ditos seguidores de Cristo, apoiando candidatos que se intitulam cristãos, mas que de fato desconhecem que o maior exemplo de fé deles morreu torturado, afinal a crucificação era uma pena de morte aplicada aos considerados fora da lei.

Vi padre pegando em armas e dizendo que iria “ensinar o código do desarmamento para a petralhada”. Deparei-me com padres usando camiseta com foto de torturador. Vi em redes sociais, um sacerdote, que inclusive morou no seminário junto comigo, desejando a morte para quem pensa diferente. Vi religioso defendendo a família tradicional cristã, mas desrespeitando os outros modelos de famílias existentes. Só me restou concluir que há muitos cristãos sem Cristo, apenas defendendo uma bandeira moral, uma instituição religiosa, uma doutrina vã, uma tradição que na maioria das vezes, sendo impensada, gera mais preconceito que amor ao próximo.

Além de professor, ele diz que atua como massoterapeuta. (Foto: Arquivo Pessoal)
Além de professor, ele diz que atua como massoterapeuta. (Foto: Arquivo Pessoal)

Por mais que não acredito em milagres, e, não acredito que o Cristo da teologia da prosperidade cure de caspa até unha encravada, acredito que houve um Jesus histórico (pois há provas históricas de sua existência), e que o mesmo deixou um legado de paz e amor, assim como outras pessoas deixaram seus bons ensinamentos para a humanidade, como os próprios seguidores de Cristo, como seus discípulos, como Francisco de Assis, Como Chico Xavier, Buda, Madre Tereza, Irmã Dulce, Dom Bosco, Gandhi, Dom Orione, dentre tantos outros seres humanos que viveram o amor ao próximo e aos mais necessitados.

Admiro religiosos que pensam, que contextualizam, que sabem interpretar quando determinado texto bíblico foi escrito e qual era o sentido naquele tempo, sabendo analisar determinadas situações. Mas, com o tempo o lado místico foi esfriando em mim, passei a não mais acreditar. Respeito minha racionalidade e respeito toda forma de crer. Nunca deixei de ser grato pela formação e pelo que aprendi nas instituições religiosas. Hoje, o tema religião, fundamentos, bíblia, tradição e magistério religioso não me encantam mais. Contudo, as pessoas insistem em querer que eu mude minha forma de pensar. Quem sabe eu mude? Mas se isso ocorrer será por mim, não por ideias de terceiros. Tenho aprendido a lidar com as pessoas que pensam diferente. Muitos querem impor suas formas de crer, ser, existir. Querem impor suas verdades religiosas, seus modelos de família e suas orientações sexuais sobre quem não vive como a maioria das pessoas. Conviver com as diferenças é o desafio do século XXI, mas, somos capazes! O fato de no momento eu não crer mais em questões transcendentais religiosas, e, de aceitar que isso poderá fazer parte do resto de minha vida, não me faz melhor que ninguém e nem me faz não acreditar no trabalho que as pessoas fazem pela fé, do bem que fazem, afinal ser humano e fraterno independe de religião.

Quando alguém me critica por minhas decisões, sempre tento levar na esportiva, afinal às vezes as pessoas só tem uma verdade para de apegar e são conseguem se colocar no lugar do outro, para entender realidades alheias, respeito sempre, contudo injustiças e etnocentrismo me revoltam. Vejo muito isso nas escolas. Quando fazemos um debate, e falamos de respeito, respeito ao diferente, sou taxado de comunista. Lamento, pois muitos nem sabem o que significa isso. Vivemos em um momento social e político que falar de respeito ao diferente virou motivo para ser taxado de comunista. Não pratico nenhuma religião, mas respeito quem tem essa prática. Sou heterossexual, respeito quem é homossexual e as demais orientações sexuais.

Tenho meus sonhos e anseios, respeito isso nas pessoas que sonham diferente. Mas quando se fala que não crê ou que crê diferente da maioria, nossa! Parece que começou o inferno na terra! Quando você passa a não mais acreditar em livros religiosos e passa a tratá-los como livros de história de um povo e de uma época, o mundo cai na sua cabeça. É difícil ser e pensar diferente neste país. Mas avalio que todo o questionamento é válido não apenas para eu pensar na vida, mas também para pensar o que as pessoas trazem em sua essência quando fazem seus questionamentos, muitas vezes carregados de preconceitos e de imposições de seu modo de ser e crer.

No final de todas as mudanças pessoais e de paradigmas de fé, resolvi apenas trabalhar e estudar. Embora ser professor não é fácil, ainda é gratificante poder ensinar. Contudo, depois de tantas mudanças no cenário do país, do estado e do município, resolvi por um tempo deixar o magistério e me dedicar a corretagem de imóveis, a massoterapia e a um espaço de eventos que montei. Apesar dos pesares, ainda acredito na força do trabalho e na educação. Sempre trabalhei em diversas áreas, me identifico muito com o ramo de vendas, empresas, treinamento de pessoas, pois me capacitei na área de recursos humanos.

Me considero um profissional versátil por estar aberto as modificações e tendências do mercado de trabalho. Lamento muito o que vem ocorrendo com a educação brasileira e com a política hodierna de nossa pátria que deveria ter por finalidade o bem comum. Entretanto, toda mudança que enfrentei durante minha vida e que irei enfrentar no dia-a-dia, foi e será uma oportunidade para crescer como ser humano, aprender com os erros e acertos e poder ser uma liderança positiva para motivar o crescimento de muitas pessoas. É importante no atual cenário que vivemos compartilhar experiências. Posso concluir dizendo que apesar dos pesares, ainda há muita coisa boa no mundo e nas pessoas inclusive em mim e em você! Estou sempre aberto para uma boa conversa, um bom tereré, um café com um bom “dedinho” de prosa, afinal religião é livre cada um escolhe a sua (ou não), mas a amizade continua...

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