Descobertas na Nhecolândia, em 42 quilômetros de cavalgada e prosa
“Nossa viagem não é ligeira, ninguém tem pressa de chegar. A nossa estrada, é boiadeira, não interessa onde vai dar...” pegando carona na Comitiva Esperança de Almir Sater é que o Lado B começa a contar junto com o galope dos cavalos, os 42 quilômetros percorridos em dois dias durante a 5ª Cavalgada no Pantanal.
A viagem não era ligeira e ninguém ali tinha pressa de chegar. Na verdade, o destino também pouco importava, era no caminho que a festança acontecia. A fazenda Baía das Pedras foi o ponto de partida, no coração do Pantanal da Nhecolândia.
O nascer do sol era visto enquanto o quebra torto era posto à mesa. O caminho da cavalgada começou com o cavaleiro baixando o chapéu e pedindo a proteção divina num Pai Nosso de todas as vozes.
Alguns passos à frente, o cenário que se via era de um Pantanal pintado em tela. Cavaleiros que conduziam o restante e, atrás, a poeira de quem vinha. Campo largo, mais estreito e passagem pela vazante. Foi assim o trajeto desde a saída até o ponto de chegada, onde o almoço e o baile eram servidos para matar a fome de comida e de uma moda ligeira.
A vegetação perdeu o verde para a seca que castiga o Pantanal. Mas cavaleiro nenhum vê em outro lugar tantas espécies juntas. Tuiuiú no céu, anta, capivara, jacaré, gado e cavalo. Tudo junto, compartilhando do mesmo Pantanal.
No caminho não tem música. A trilha sonora é o casco do cavalo, o ruído constante do galopear na areia ou na mata seca. Que volta e meia contrasta que algum colorido. Verde persistente que não se deixou abater com a estiagem.
A meteorologia ajudou à seu modo. Com a névoa seca presente o sol não ficava tão forte para a aba do chapéu que garantiu a proteção dos cavaleiros.
O encontro do cavalo pantaneiro com a vazante é um momento único. O galopear vai mais rápido, a pressa só existe ali. Tanto do cavaleiro como do cavalo, para a água que vem refrescar.
É o momento de soltar as rédias, dar liberdade ao animal. Para que ele procure a água que lhe for conveniente, de preferência a mais gelada. É neste momento em que a fauna se encontra um pouco mais. Pertinho, enquanto o cavaleiro permite um descanço a si próprio e ao animal, jacarés ficam observando. De longe ou mais próximos, só com o olho de fora.
Deixam quieto. Não se manifestam. Se exibem apenas para fotos, permitindo que o ‘colega’ aproveite da água fresca de seu habitat.
A cavalgada continua. E sempre vai continuar. Pausa para água, líquidos. Além da vazante que a natureza proporciona, a água também do bar, que acompanha todo o trajeto. O tereré não pode faltar. Passa de um pra outro, de outro pra um. Erva-mate e o gelo amenizam o calor do Pantanal.
A prosa acompanha todo cavalgar. Com todo mundo parente de todo mundo, os tios e tias são usados não só para irmãos dos pais, mas de forma carinhosa a quem viu a juventude pantaneira crescer em cima de um cavalo.
Do pequeno Tiago Coelho Lima de Moura Castro, 6 anos, ao mais velho cavaleiro ‘seo’ Nildo Barros, 73 anos, Pantanal é coisa que corre no sangue. Audacioso e confiante, Tiago segura a rédia e segue firme, dispensa ajuda e é em cavalo grande que sai a cavalgar.
Os primeiros passos foram praticamente em cima dos quatro cascos. Ele monta desde os 2 anos e “em qualquer cavalo”, responde. Neto de ‘seo’ José Coelho Lima Filho, 68 anos, ele era só um dos 17 integrantes da família que foram em peso à cavalgada.
Para a foto de toda família, foi pelo menos quatro chamadas “vem fulano, vem fulano”. “Espera aí está faltando fulano”. Até que saiu.
Das 17 pessoas, quatro eram filhas, três genros e oito netos. ‘Seo’ Zezinho, do patriarca com 68 anos à neta caçulinha, de 4. “Nossas duas primeiras filhas nasceram na fazenda. É um significado muito grande pra gente”, explicava o pecuarista e a elegante esposa, Mabel Mujica Coelho Lima, 64 anos. Juntos, moram há 52 anos no Pantanal.
“Temos o fanático na família, que é o Tiago. A vida dele é fazenda, fala que vem pra cá e ele já está com as malas prontas. Mas todos montam e procuramos fazer eles montarem para não perder o vínculo da cultura que tem que preservar, da família pantaneira”, disse o casal.
Na pausa para o almoço, à mesa, macarrão com carne seca e ao lado o grupo de violeiro e sanfoneiro para tocar a moda ligeira, que assanha o povo e faz dançar.
De improviso saía “Gostei dessa cavalgada e vou ficar por aqui”. A saída é mais longa, o trajeto parece demorar mais. E na falta de água, vai o brejo mesmo, que encheu o cantil e matou a sede dos cavaleiros. Homem e animal em um momento único, na divisão do mesmo Pantanal.
A sensação de cavalgar pela Nhecolândia é a mesma para quem se criou em terras pantaneiras ou veio de longe para experimentar. É experiência de vida. Contato mais próximo com a natureza não há. O cair do sol visto de cima do cavalo, numa vazante que consegue ainda destacar-se em meio à seca e o gado que solto no pasto, acompanha o passar os cavaleiros.
É voltar no tempo. Sentir o que sentiram os antepassados. Quem colonizou a região e hoje luta através dos mais novos para manter a tradição do homem pantaneiro.
“Dormir 9h da noite e acordar 5h com o galo cantando é outra experiência. Tem que topar o desafio. E o pantaneiro é um pessoal muito simpático, independentemente de ser com um carioca ou outra pessoa qualquer”, diz o estudante de Comunicação, Lucas Santos, 20 anos, que trocou a areia de Copacabana pela poeira da cavalgada no Pantanal.
“Desde a primeira viemos. Pode faltar cavalo, mas não falta a gente. Não temos ligação nenhuma, mas é por gostar mesmo do meio rural. Só não tenho propriedade por falta de dinheiro, mas gosto de cavalgar”. Quem fala é Jaime Alexandre Rodrigues, 32 anos, empresário e que nada tem a ver com o meio rural, além da admiração.
Mas de longe mesmo vem o português. Nelson Matos, 42 anos e engenheiro mecânico veio da África. De férias, caiu de paraquedas no Pantanal, depois de viajar três dias em cinco voos, precisava viver essa experiência.
“Era vontade de fazer a cavalgada. Havia feito uma em Portugal, mas queria conhecer como era fazer aqui e está sendo maravilhoso. Toda parte da natureza, cenas bonitas, partes bonitas, verde muito bonito, mesmo seco”. Tudo falado com sotaque carregada de ‘purtuguês’.
Para quem não tinha prática no galopar. Vale o ditado “No Pantanal, siga o pantaneiro”. Expressão que evidencia a hospitalidade. Sabendo galopar ou não, até o animal faz o visitante se sentir da terra.
“Essa paisagem, a vista das flores, dos animais, dos bichos, é muito gostoso. Mas o que me chama a atenção é o companheirimsmo e a receptividade do pantaneiro. Mineiro é muito hospitaleiro, mas o pantaneiro tira a roupa do corpo pra te dar, vai muito além do que se espera de um ser humano. Estou brigando para ter ano que vem e vou partindo com essa esperança”, resume o fazendeiro Fábio Rossi, 41 anos, depois de 42 quilômetros sobre um cavalo.