Passar o Carnaval sóbrio é uma mudança profunda no modo de viver
Jornalista descreve como foram os dias de Carnaval sem uma gota de álcool na boca
Se alguém me dissesse, há dois anos, que curtiria o sábado de Carnaval e, no outro dia - que pra quem não lembra é domingo - eu ainda teria disposição para ir à academia treinar, riria da cara da pessoa. Isso porque, muito provavelmente, não estaria em condições nem de sair da cama. Isso, claro, se tivesse ido dormir.
Eis que esse dia chegou. No último domingo (11), levantei, pleno, às 9h da manhã, tomei meu café e fui a pé, debaixo de sol, treinar. Nem conto que, na noite anterior, estive no bloquinho na Esplanada Ferroviária. Dancei, pulei, gritei como sempre, mas algo foi diferente: me mantive sóbrio.
Por isso acho que esse relato não é, propriamente, sobre Carnaval, é sobre como nossa perspectiva da vida e visão de mundo podem mudar, seja por fatores internos ou externos, seja por vontade própria ou porque as circunstâncias nos forçam, e como o Carnaval tem me ajudado a enxergar isso com mais clareza.
É o meu caso, não estou nessa por opção, a vida me colocou nesse lugar e, já que estou aqui, tenho de ver um lado bom, senão, não vale a pena, melhor me entregar.
Quando digo que estou nesse lugar, me limito a explicar que fui perdendo, ao longo do tempo, a capacidade de lidar com a falta de sobriedade. Hoje, com apenas 30 anos, idade com significado de transição pra alguns, coincidentemente, não consigo mais me transportar de fuga em fuga, anestesiando um monte de sentimentos, até que os dias, meses e anos passem.
Na verdade, a “fuga” passou a não ser mais fuga e virou meu lugar de moradia, contexto que transforma a sobriedade no meu refugio, um universo totalmente estranho pra mim, principalmente em momentos festivos, cuja representação máxima é o Carnaval.
Então vamos a ele novamente. Eu pulo Carnaval desde criança. Na infância, a cidade onde nasci, tinha a festa mais tradicional da região. Com o início da pré-adolescência, veio a curiosidade pela bebida e a inevitável associação entre beber e me divertir.
Acho que experimentei álcool pela primeira vez por volta dos 13 anos de idade e, até os 29, bebi de forma ininterrupta. Me lembro de um Carnaval, aos 14 anos, já morando em Campo Grande, que voltei a minha cidade natal. Lá, com essa idade, longe dos meus pais, bebi todos os dias, passando por situações vexatórias, que se repetiram doravante, mas que nunca me fizeram cogitar fazer diferente.
Odeio moralismo, mas a apologia ao consumo de álcool é quase constrangedora para pessoas que não querem e não podem beber, como eu. Em um dos dias, em Campo Grande, ouvi do artista que se apresentava que o público estava muito parado, que "precisava beber mais", incentivando os foliões a beber mais mais. Me causou um certo desconforto mas, no fundo, o problema é meu.
A bem da verdade, passar o primeiro Carnaval sóbrio não deveria ser motivo de tanto orgulho ou de estar relatando assim, publicamente. Se fosse mais severo com meu processo de recuperação, não teria pisado o pé no Carnaval.
Teimoso, resolvi me testar. Me saí bem do ponto de vista concreto e objetivo: mantive-me sóbrio. Porém, sob uma análise mais subjetiva, ainda não dá pra dizer.
Percebi que ainda tenho toda uma "personalidade alternativa" construída sob os pilares do consumo de álcool, e nos momentos mais graves, outras drogas. Passo por um profundo processo de ressignificação das coisas, de reconstrução dessa personalidade sóbria.
Um exemplo de fácil assimilação é flertar, chamar alguma mulher pra conversar, dar em cima alguém. Eu ainda sou incapaz de fazer isso pessoalmente, sóbrio, sem antes ter quase um ataque de pânico. O que saí do 0 a 0 nesse Carnaval não foi brincadeira.
Um amiga muito querida, há pouquíssimos dias, me enviou um texto publicado anonimamente na Folha de SP. Era uma leitora que lutava contra o alcoolismo há anos e falou sobre a relação dela com Carnaval. Um texto lindo e honesto, que me tocou muito.
Disse minha a amiga na mensagem junto do link: "Como é o Carnaval pra vc (sic)? Eu sei que é uma coisa muito pessoal, mas eu adoraria saber. Adoraria saber no sentido de me importar. Sempre penso em você", completou ela.
Eu e autora do texto temos histórias, pelo menos pelo que ela relatou, bem diferentes, mas os sentimentos são os mesmos. Tenho um "demônio" que me acompanha prontinho pra me jogar no mundo da confusão mental e do escapismo. Só que isso não me cabe mais.
Estar sóbrio no Carnaval é olhar pra si o tempo todo, mas o canal por meio do qual acesso esse "eu" é, paradoxalmente, o "outro". Me vi em cada pessoa desnorteada, em cada pessoa eufórica, falante, risonha. Para o bem e para o mal, eu estava ali, analisando cada um. Muitas vezes julgando. Isso porque sou um ser humano bem falho, hipócrita, de achar que sou melhor quando, justamente por ser pior, não posso fazer o que ele faz.
Voltando ao moralismo, fiquei com muito medo de cair nessa armadilha. A natureza do Carnaval é antimoralista, é uma manifestação cultural forjada em ser e fazer, nesses poucos dias, aquilo que se quer.
Desse ponto de vista, o Carnaval como um todo, me parece uma espécie experiência escapista coletiva. Um transe muito louco, totalmente enraizado culturalmente. Portanto seria injusto tentar me encaixar nesse contexto sendo eu quem sou e sendo o Carnaval quem ele é. As coisas são o que são.
Ficaria horas refletindo sobre essa experiência tão pessoal quanto insignificante pros outros, mas o fato é que estar sóbrio é viver a vida como ela se apresenta, e não raro, ela é difícil, mas só se constrói mecanismos para torná-la menos difícil, no meu caso, quando se acredita de verdade em algum lado bom da lucidez".
Parece pouco, mas quase depois de um ano, ir à academia após o sábado de Carnaval é um fragmento desse lado bom. Tento crer que perseverar nesse caminho fará o lado bom me abraçar como um todo. Repito que essa experiência é totalmente pessoal e tenho certeza que muitas pessoas conseguem viver de outro modo.
Também não queria parecer estar cantando "vitória". Pra uma pessoa como eu, nesse campo da vida, não tem vitória, só o que existe é uma espécie de "vou tentar parar de perder". Só por hoje eu não perdi, mas ninguém sabe o dia de amanhã.
*Lucas Mamédio é jornalista, tem 30 anos e topou falar sua experiência ao viver um Carnaval de mãos dadas com a sobriedade.
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