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Quando o medo bate à porta, como não cair nas garras do relacionamento abusivo?

Comportamentos danosos são disfarçados de cuidado e afeto e isso é fundamental que seja identificado

Thailla Torres | 06/01/2020 08:59
Cena de Celeste e Perry na série Big Little Lies, em que ela sofre com as agressões do marido.
Cena de Celeste e Perry na série Big Little Lies, em que ela sofre com as agressões do marido.

Quem já foi assaltada sabe que a segunda tentativa de sair às ruas é um fracasso no quesito “coração em paz”. O medo toma conta e a paranoia também. A rua se torna um ambiente opressor. Há pessoas, que por um motivo ou outro, tem muito mais controle e, portanto, o medo não tem sobre elas um poder tão grande. É nesse contexto da “pessoa assaltada” que a psicóloga Alaine Elias Amaral ajuda mulheres vítimas de relacionamentos abusivos a dar uma rasteira no medo e reconstruir a autoconfiança para não cair novamente nas garras de uma relação que excede os limites.

Alaine desenvolve atividades com mulheres vítimas de violência doméstica no projeto Artes da Penha, da Casa da Mulher Brasileira, e já usou a história do assalto em diversas palestras como forma de reflexão. “Eu convido as mulheres a imaginar uma pessoa que nunca foi assaltada e como ela se sente ao sair sozinha na rua. A maioria responde que ela deve se sentir confiante. Quando a pessoa é assaltada, ele sai às ruas com medo e tem uma grande chance de perder a autoconfiança”.

Neste cenário imaginário, a psicóloga questiona quem um assaltante escolheria para ser vítima “a pessoa com medo ou a pessoa confiante”. Como a maioria traz o medo como resposta, o sentimento fortalece a necessidade de discutir as causas que faz alguém permanecer em um ciclo de violência. “Grande parte das vezes existe ferida de infância. Muitas vezes essas feridas estão relacionadas com a maneira como alguém aprende que consegue ser amado”, explica.

Alaine desenvolve atividades na Casa da Mulher Brasileira, e já usou a história do assalto como forma de reflexão. (Foto: Arquivo Pessoal)
Alaine desenvolve atividades na Casa da Mulher Brasileira, e já usou a história do assalto como forma de reflexão. (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando se trata de mulheres ainda tem uma questão cultural sobre o que mundo definiu como “mulher de verdade” ao longo da história. “Como muito já se tem falado, por muito tempo a mulher ideal foi tratada como aquela que se submete aos desejos do marido, que cuida da casa e dos filhos e que não se pronuncia publicamente. Até hoje se percebe vestígios dessa cultura que ainda está em processo de mudança, como em altos índices de violência contra a mulher, dupla jornada e preconceitos relacionados ao mercado de trabalho”.

Só que a mulher pode ser mais do que uma vítima ou rebelde diante dessas circunstâncias, explica. “Ela não é somente a vítima que sofre os efeitos da desvalorização da mulher, e não é somente a rebelde que não se conforma com padrões culturais, que percebe que eles precisam ser modificados e luta por isso. Não se trata de dizer que a mulher não é vítima ou que ela não pode tomar atitudes de oposição ao que é imposto. A questão é que nós somos mais do que isso”.

Na visão da psicóloga o primeiro passo é compreender não cabe somente aceitar ou recusar o que tentam decidir. “A mulher é capaz de ser autora da sua própria história, não só de escolher aceitar ou rejeitar decisões de outros, mas de criar suas próprias decisões, seus próprios caminhos. Eu sempre digo que nós mulheres não queremos só respeito, queremos reconhecimento também. E um reconhecimento fundamental é o de ser capaz de ter autonomia diante da própria vida”.

Mas como vencer o medo? - É fundamental que a mulher acredite ou volte a acreditar na própria capacidade de autonomia. São muitos os aspectos que a afetam nesse sentido: condições econômicas, as próprias condições do mercado de trabalho, principalmente quando se trata de mulheres, crenças sobre a condição de mulher, o apoio que ela recebe, seja apoio quanto a sua segurança, familiar, social ou mesmo socioeconômico, os medos que ela carrega e principalmente sua autoestima.

“Por isso são muitos os motivos que dificultam a saída do ciclo de violência. E existem também aqueles casos onde a violência é recorrente mesmo não vindo de um mesmo agressor. Muitas mulheres se perguntam, nesses casos, o que as faz saírem de um relacionamento difícil e entrar em outro”, pontua.

Cena do filme "Dormindo com o inimigo", de 1991, em que Martin, um marido compulsivo, ciumento e violento, apavora Laura.
Cena do filme "Dormindo com o inimigo", de 1991, em que Martin, um marido compulsivo, ciumento e violento, apavora Laura.

As atitudes carregam a história de cada ser humano, por isso, quando não há cuidado das feridas internas elas tendem a se refletir nas ações, especialmente quando elas envolvem um medo. “Nossos traumas mal resolvidos podem se refletir em nossas atitudes, por exemplo, em comportamentos de submissão, culpa tentativas de aceitação, atitudes em que o medo se torna explícito”.

O medo é prato cheio para o agressor – Segundo a psicóloga, para uma pessoa potencialmente agressora é mais fácil agredir quando o outro se mostra vulnerável. “Então uma estratégia necessária para não voltar para um novo ciclo de violência é investir na própria autoestima. Aprender a se posicionar, desenvolver a coragem, dizer não e não se intimidar com rejeições, o que envolve encarar e investir em resolver os próprios medos”.

Comportamentos danosos são disfarçados de cuidado e afeto e isso é fundamental que seja identificado. “Muitas vezes as pessoas permanecem em um ciclo de violência por acreditarem que é esse o amor que elas conseguem ter. Nós precisamos, antes de qualquer coisa, aprender a ser o grande amor de nossas vidas. E isso nem sempre é tão simples, assim como costumam exigir grandes conquistas. Mas, é claro, não seria justo deixar de mencionar também a necessidade de políticas públicas efetivas e investimento em mudanças culturais. Já que tudo isso não se trata de um fenômeno isolado no interior de alguém, mas que se relaciona com uma realidade concreta e com aspectos sociais”.

O próprio ciclo de violência, por vezes quando é discutido, tem sido condicionado à agressão física quando se trata da fase de agressão, tratando de maneira separada os outros tipos de violência, direcionados para a fase antecipatória, chamada de fase da tensão. “Isso dificulta a visibilidade dos outros tipos de agressão como agressões e não somente tensões entre duas pessoas. Por isso, é importante falar do ciclo da violência considerando todos os tipos de agressão”.

O ciclo da violência é resultado de uma pesquisa de Lenore Walker, que serve de pilar pra entendermos a dificuldade que muitas vítimas têm para sair da situação de violência, explica Alaine. “O ciclo é compreendido em três fases: tensão, agressão e reconciliação. A primeira seria equivalente a um conflito, carregando cada vez mais sinais de desrespeito conforme o ciclo se repete, intensificando-se e dando origem à segunda fase. A fase seguinte corresponde à agressão de modo mais evidente, resultando de uma descarga de tensões acumuladas na fase anterior. Aqui podemos considerar os diversos tipos de agressão. A última corresponde à fase na qual o agressor, tendo em vista que a vítima ameaça dar fim ao ciclo, intervém com promessas de mudança e esperança”.

A agressão física, de fato, na grande parte das vezes é precedida dos outros tipos de agressão, portanto, Alaine considera importante observar que o ciclo também pode ser percebido em relacionamentos que não culminam em momentos de explosão. “Há um gradativo aumento da gravidade das ações conforme o ciclo se repete, mas existem casos em que a vítima permanece em um ciclo de violência sem ter experiência da agressão física. Olhar para o ciclo de violência dessa maneira ajuda a compreender o impacto da fase de tensão enquanto fase de conflito, uma vez que a vítima, desejando permanecer na fase anterior e temendo a evolução para a próxima a fase, muitas vezes se submete às vontades do agressor, chegando até a culpar-se pelas agressões sofridas”.

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