A ilusão da salvação nacional
Ver o Brasil entrar na terceira década do século 21 como uma nação pobre e desigual é uma grande desilusão. A desigualdade social – que pode ser medida pela distância entre a renda média das camadas pertencentes à metade mais pobre da população e a renda média das camadas pertencentes à metade menos pobre – não é um problema nos países desenvolvidos; mas, nos países pobres, assume a condição de catástrofe humanitária.
Em um país como Canadá ou Bélgica, por exemplo, com renda por habitante acima dos US$ 40 mil/ano, a desigualdade não gera miséria e quase não há pobreza. No Brasil, usando os mesmos conceitos, com renda por habitante de US$ 11 mil/ano ao fim de 2020, (calculada pelo dólar paridade de poder de compra, a preços de 2000, conforme publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 16 de dezembro de 2020), a desigualdade causa uma catástrofe social.
Antes da pandemia, portanto em situação melhor que hoje, o Brasil tinha 54 milhões abaixo da linha da pobreza, dos quais 14 milhões de miseráveis, pela classificação do Banco Mundial. Aqui, a pobreza e a miséria são imensas, sérias demais, e constituem uma ameaça à democracia e ao capitalismo. Nos momentos de indignação diante de crises é comum ressurgirem propostas de salvação nacional, entre elas a ideia de uma nova Constituição Federal.
A atual Constituição nasceu em 1988, edificada sobre duas causas principais: a oposição ao regime militar e a qualquer ditadura (essa era a causa política, mirando a liberdade) e o cansaço com a inflação e o baixo crescimento (que era a causa econômica, mirando o desenvolvimento). Não é preciso dizer que a nova Constituição não funcionou muito bem, pois já sofreu 106 emendas e continua recebendo críticas.
Depois do mensalão e do petrolão, ampliou-se o desencanto com a política e desânimo diante da enorme corrupção e pouca punição. A vida em sociedade transita sob dois universos que, ao contrário do que muitos pensam, não podem ser separados: o universo político e o universo econômico. Um não sobrevive sem o outro. Eles não são excludentes. São partes complementares da vida coletiva.
Abusando da expressão, eu diria que no universo da política se edificam os valores de uma ordem nacional composta de defesa nacional, segurança interna, justiça, liberdade, igualdade de oportunidades, provimento do mínimo para as necessidades básicas, produção de bens públicos de uso coletivo e garantia de moeda estável, sob um aparato estatal governado por representantes eleitos por voto livre e mandato fixo, isto é, pela democracia.
Já o universo econômico tem como base um sistema produtivo sob o regime de livre iniciativa, direito de propriedade, liberdade de empreender, livre mercado, regime competitivo de preços, defesa da concorrência, proteção à soberania do consumidor e a seu direito de escolha. Isto é, um capitalismo concorrencial em que o mérito e o esforço sejam recompensados.
Pode-se dizer que o universo político constrói a superestrutura da vida coletiva civilizada. O universo econômico, como dito no parágrafo anterior, reúne os fatores de produção (recursos naturais, trabalho e capital) em empreendimentos e negócios para produzir os bens e serviços que vão definir o padrão de vida médio. Pode-se odiar a política, mas não há como se livrar dela, porque ela é necessária.
A vida em sociedade não é fácil. O desejo de ser livre e o desejo de viver em comunidade, a disposição para cooperar e competir, o embate entre o egoísmo e o amor ao próximo são, entre outros, conflitos humanos e sociais. A organização da sociedade para fins econômicos e de convivência pressupõe um ordenamento em um sistema de hierarquias, de poder e de justiça. Ou isso vem pela democracia ou vem pela força.
Atualmente retornou a proposta de uma nova Constituição. Não que essa vigente seja boa, com suas 106 emendas. Mas, no que tange aos princípios básicos da vida em sociedade numa nação livre, ela atende bem. O problema do país não é propriamente a Constituição: é o que se faz com ela. A salvação nacional não se dará por mágica regulatória, mas por obra do povo e dos governantes. Ou não se dará nunca.
(*) José Pio Martins é economista.