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A palavra consciência precisa ser levada a sério

Janine ‘Nina Fola’ Cunha (*) | 19/11/2021 08:30

Somente encarando a verdadeira história do Brasil é que desenvolveremos uma consciência social e particular, pontuando fatos e suas consequências, trazendo à tona inclusive os que são desconhecidos ou apagados. Pois estes acontecimentos causam, influenciam e estruturam até hoje nossa sociedade e, não por fim, mas talvez mais importante, devemos nos colocar dentro dessa dinâmica social. Assim poderemos começar a considerar que estamos levando a sério as questões sobre as desigualdades racial e social impetradas aqui.

Minha pequena e aparentemente óbvia provocação tenta deslocar o paradigma de culpa, comum à cultura judaico-cristã, para a simples análise sociológica de como ações de normatizar os acontecimentos hediondos como a escravização negra e o genocídio indígena podem produzir e reproduzir violências sem refletirmos que continuamos fatalmente violentos enquanto sociedade.

Se cada qual, observando sua própria história, se localizando, se particularizando, se racializando, olhar sem filtros que existem outras trajetórias, outras construções sociais, seria possível, mesmo assim, entender e conseguir formar uma consciência não somente de si, mas de humanidade na amplitude que esse termo merece ser considerado?

Pois então digo que, para mim, essa é a aposta da proposta sobre a consciência negra no novembro!

É sobre isso que o Movimento Negro gaúcho tem trabalho duramente nesses últimos 50 anos, mas que ainda vê, em 2021, a data do 20 de novembro excluída institucionalmente do calendário deste estado. Tem algo mais racista que essa negação a partir de um conhecimento histórico? Tem algo mais racista que manter uma letra de um hino que veementemente afirma os louros da branquitude escravista racista?

A luta das pessoas negras, seja ela em movimentos, grupos ou individualmente, é uma luta por dignidade, por justiça a quem, mesmo sendo diuturnamente morto (morte física, morte parcial que limita o movimento, morte intelectual, morte cultural, social e política, enfim, as diversas possibilidades que os humanos têm de morrer), ainda sim, propõe saídas coletivas que possibilitam efetivamente incluir toda a sociedade.

A luta pela consciência negra não é para que negras e negros se entendam como tal. Esse trabalho toda e todo racista faz de formas violentamente diferentes – revelam pela televisão, gritam para nossas crianças na escolinha ou nas ruas para pessoas que nem conhecemos, mas identificamos, fazendo referência à “macacada”, e por aí vai!

O chamamento, que é a tônica do Dia da Consciência Negra, extrapola a comunidade negra. Tensiona a branquitude que se estrutura como um lugar privilegiado, isolado e protetor das verdades brancas de mundo e de vida. A consciência negra, além de ressaltar a negritude, propõe que se racializem as pessoas brancas, se localizem herdeiros dessa pilhagem escravocrata, das heranças materiais que consolidam outras trajetórias de vida, que influenciam na formação social do trabalho e, portanto, nas diferenças de colocação racial/social.

Não! O movimento não clama que ‘sejamos todos negres’, mas que, a partir do que o evento Consciência Negra traz como discussão – a consciência –, possamos nos diferenciar e largar de mão princípios que nublam a nossa visão, como o da igualdade. Temos que assumir que não somos todes iguais e que o Brasil não é o paraíso da democracia racial.

A consciência negra promove, também, dizer que todo mundo tem um passado a ser revisto e que supremacias brancas foram bancadas pelo governo, e que isso não é causa de méritos individuais. Essa tensão que a consciência negra propõe, se não é levada com seriedade, vai evoluindo para o discurso de ódio e medo que a branquitude expressa pela negritude, como Grada Kilomba bem nos explica.

Sabemos, há uma rejeição desde sempre de nossas falas ao ponto de quererem nos tornar totalmente estrangeiros dentro de um país que há 500 anos convive com a população negra sem aceitá-la ser daqui, sem aceitar sermos humanos e ainda considerando que viemos como peças e herança.

Além da consciência negra, o movimento social negro também é responsável pelas ações afirmativas, políticas que têm resultado na maciça entrada de pessoas negras, principalmente mulheres, na universidade, querendo estudar, buscando responder academicamente a tantas das nossas perguntas (pois sim, Bwana, nós as temos!).

As mulheres negras aqui no RS têm tomado esse lugar. Afirmo isso pois faço parte de um Coletivo de Mulheres Negras – Atinuké – que, em sua maioria, permanece no espaço acadêmico gritando aos quatro cantos ou no meio da encruzilhada: a Universidade é o nosso lugar!

Também podemos responsabilizar o movimento negro por incluir, por meio de lei, o estudo da história e da cultura negra e indígena em todos os espaços escolares. Uma lei totalmente desprezada, desqualificada por quem se entende como manancial de formação de professores, tal como a Universidade.

O fato é que estamos sempre num processo de não esmorecer nas lutas, numa energia e resignação que só podemos debitar à ancestralidade, pois é um axé infindável! E nós não quebramos e muito menos nos calamos! E voltamos sempre com alguma proposta coletiva, inclusiva de fato, com nossos homens, velhos e crianças.

No último pleito eleitoral pudemos acompanhar as propostas de mandatas coletivas! O ano de 2022 está aí, e no novembro próximo mais e mais propostas radicalmente democráticas, vindas das mulheres negras, vão estar em pleito.

E nós, caras pálidas? E o nosso processo de consciência coletiva? Pode acompanhar isso? Espero que sim! Espero que possamos aos poucos retomar o que se perdeu no caminho da democracia, num processo de desenvolvimento e diminuição de desigualdades, que não seja capitalista e arrasador, mas que seja consciente sobre a sociedade que temos e planeje a que queremos ter. Por certo, para isso, deveremos decidir de forma bem diferente, certamente cedendo, abrindo mão das ideias formadas sobre tudo e observando as vozes que sempre gritaram mas nunca foram bem equalizadas nos ouvidos!

(*) Janine ‘Nina Fola’ Cunha é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS e membro dos Grupos GeAfro e LUTA, ambos vinculados ao NEAB.

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