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A Universidade e a tirania do mérito

Igor Corrêa e Cristianne Maria Famer (*) | 05/11/2021 08:11

A educação superior assume qual papel frente às desigualdades sociais e à concentração de renda? Veremos que esse debate não é novo e as respostas não tão óbvias quanto parecem. Nos últimos quarenta anos, a competição entre países e pessoas se acirrou, o que impôs um novo papel à educação superior.

O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Antônio Cunha avaliou em texto escrito nos anos 1990 a existência de um currículo oculto nas universidades, que se embasa na ideia do exclusivismo, ou seja, de que a garantia dos níveis mais elevados de remuneração, estima social e posição de poder seriam exclusivamente destinados à seleta parcela da população que conseguisse obter diplomas de graduação.

Ele lembra ainda que, nos anos 1970, houve um embate entre os ideólogos dos governos militares e professores universitários em torno do papel da educação no enfrentamento à concentração de renda. Em contraposição ao argumento do governo militar, professores das universidades brasileiras demonstraram que a ampliação da oferta de educação não desfazia o dispositivo de acumulação do capital em detrimento do trabalho.

Assim, ampliar a oferta da educação, isoladamente, beneficiava algumas profissões de alta escolaridade que passavam a agir como colaboradoras para a manutenção da concentração de renda.

Fazemos um corte temporal e uma viagem do Brasil para os Estados Unidos dos anos 1990 e 2000 para ouvir o discurso dos principais governantes dessa nação. Pelo livro do professor da Universidade de Harvard Michael Sandel é possível saber que os presidentes desse país, independentemente de seus matizes ideológicos, advogaram a ideia de que a educação é uma oportunidade para a ascensão social. Sua população enfrentava, além do aumento da desigualdade, salários estacionados e a diminuição de vagas de emprego no setor industrial.

A título de exemplo, mostramos como essa solução apareceu na retórica do presidente dos Estados Unidos Barack Obama em 2008. Ao fazer um pronunciamento público, ele recordou que, no passado, era possível a uma pessoa sem diploma universitário ter um emprego bem remunerado, mas que essa possibilidade havia se tornado muito difícil. Ele argumenta que essa é uma consequência inevitável da economia global do século XXI.

Com isso, ele naturaliza que, sob a hegemonia da racionalidade neoliberal, só os mais escolarizados podem obter uma colocação.

Na retórica do presidente, fica consignada uma sentença da inevitabilidade dos efeitos da economia neoliberal globalizada: restaria às pessoas e aos governos somente se adaptar a essas condições, reduzindo, pela busca individual por diplomas, os efeitos negativos tanto do achatamento do poder de compra de salários quanto da inacessibilidade a vagas de emprego, para tentar acessar o restrito círculo de profissionais de elite.

Ao discutir os impactos das transformações tecnológicas sobre o trabalho, Denis Maracci Gimenez e Anselmo Luís dos Santos analisam a crença generalizada de que essas mudanças aumentam a exigência da expansão da educação formal. Os autores assinalam que mesmo os altamente qualificados têm tido retornos menos seguros. Ao analisar a realidade de ocupação de vagas de emprego nos Estados Unidos, eles constataram que, de 2001 a 2013, os salários dos graduados caíram mais do que o de trabalhadores de menor formação. Eles consideram que isso representa um revés na ideia simplista que associa educação a salários altos. À medida que aumenta o número de pessoas diplomadas, o prêmio ligado a essa escolaridade despenca. Além disso, as mudanças tecnológicas parecem dificultar mais ainda o quadro.

Embora reconheça que o Ensino Superior representa, em geral, um aumento de três vezes do salário em relação às outras escolaridades, nota técnica de 2019 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) revela que a economia brasileira cresceu em uma velocidade insuficiente para conseguir absorver a crescente formação de diplomados. Nesse contexto, outro problema surgiu: uma dificuldade maior para os recém-diplomados de origem mais humilde obterem emprego, mesmo um emprego sem exigência de diploma. “A promoção de maior acesso à Educação não foi capaz de resolver por si só os problemas do mercado de trabalho brasileiro”, conclui a nota.

Nos últimos quarenta anos, foi naturalizado na retórica governamental o acirramento da competição entre indivíduos diante da crescente escassez de oportunidades de emprego. Isso posicionou as universidades como fiadoras do que Michael Sandel nomeia de tirania do mérito. Uma ideia tóxica que nos faz crer que o esforço individual é o grande motor do sucesso, mas também legitima a ampliação do abismo social, estimula a polarização e impede que as sociedades sejam mais solidárias. A ideia de que “você tem o que merece” expõe e explicita quem nada tem. Afinal, nosso destino é mero resultado de nossas ações/condições.

No campo educacional, tal lógica faz crer, aos que obtiveram um diploma universitário, que eles merecem se distanciar, social e economicamente, dos demais, pois seriam merecedores dos escassos empregos respeitáveis e das raras oportunidades de vida decente.

O exclusivismo, que era uma prática pouco visível nas universidades, passa a ser mostrado ostensivamente como um imperativo ou como uma tirania do mérito. Uma prática produtora de humilhações e ressentimentos naqueles que nada têm (e que, talvez, nada terão) e que acirra a polarização entre vencidos e vencedores. Essa é a lógica fundante da racionalidade neoliberal, que emergiu com força nas últimas décadas também no âmbito das universidades, que certificam o “mérito” daqueles que já chegam nelas em condições díspares. Cabe a nós, dentro e fora das universidades, resistir a tais práticas e inventar novos modos de se viver e produzir conhecimento que sejam úteis, mas sobretudo que sejam compatíveis com a ideia de vivermos solidariamente em sociedade.

(*) Igor Corrêa Pereira cursa o mestrado em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU-UFRGS) na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação e é técnico em assuntos educacionais do Instituto de Letras da UFRGS. Cristianne Maria Famer Rocha é professora da Escola de Enfermagem e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU/UFRGS).

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