Alimentos ultraprocessados e a insegurança alimentar no Brasil
Quando o tema é alimentação, o Brasil tem um grande ponto a seu favor: a cultura alimentar. Prova disso são falas como “hoje quero comer comida” – quem é daqui logo entende que “comida”, nesse caso, tem a ver com um belo prato de arroz, feijão, salada, carne, e passa longe de sanduíches e fast food em geral. Junto à variedade de alimentos que temos no país, essa cultura alimentar protege, há décadas, a saúde da população. Diferentemente dos EUA, por exemplo, o consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil ainda não é tão significativo quanto o consumo de refeições baseadas em comida de verdade, sejam elas caseiras ou preparadas em restaurantes comerciais.
É uma realidade da qual nos orgulhamos e que, infelizmente, começa a mudar. Nos últimos meses, falar de comida tem sido falar de preços. Itens básicos como arroz, óleo, café, cenoura e tomate – importantes para a alimentação adequada e saudável – atingiram valores impraticáveis para boa parte da população. É possível que, a partir do segundo semestre deste ano, uma dieta baseada em alimentos in natura e minimamente processados seja, pela primeira vez, mais cara que uma alimentação baseada em ultraprocessados. Isso já acontece em alguns casos: um pacote de macarrão instantâneo pode custar menos de R$ 2, valor que não compra um maço de couve em São Paulo, por exemplo.
O preço, no entanto, é apenas uma das barreiras da alimentação adequada e saudável – em evidência por conta da inflação. O Brasil enfrenta outras barreiras, mesmo anteriores à pandemia. Uma delas são os chamados desertos alimentares, nome dado às regiões onde não há disponibilidade de alimentos frescos. A indústria de alimentos ultraprocessados também coloca barreiras para o consumidor, principalmente por meio de estratégias de marketing e publicidade, causando, por exemplo, confusão sobre que alimentos podem ou não compor uma dieta saudável.
É possível que, a partir do segundo semestre deste ano, uma dieta baseada em alimentos in natura e minimamente processados seja, pela primeira vez, mais cara que uma alimentação baseada em ultraprocessados
As consequências disso são claras – já conhecidas e monitoradas pela epidemiologia nutricional. Sem acesso à alimentação de qualidade, os caminhos são preocupantes. Na melhor das hipóteses, tem-se a monotonia na alimentação: quando a variedade é reduzida no prato, e a pessoa vai deixando de consumir fibras e nutrientes importantes, como proteínas, vitaminas e minerais. Outra saída é aderir aos alimentos ultraprocessados, geralmente ricos em açúcares e gorduras e amplamente associados ao desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. Por fim, a insegurança alimentar, que, em seus diferentes níveis (sendo a fome o mais grave deles), atinge, hoje, mais da metade da população brasileira.
A situação na qual o Brasil se encontra é, em parte, um déjà vu do século 20 – com a diferença de que, naquele tempo, a desnutrição não se somava à obesidade. O país tem expertise para reverter o quadro, o que ficou claro nos anos 2000 e em parte dos anos 2010, quando o Brasil saiu do mapa da fome da Organização das Nações Unidas. O caminho foi um só: investir em um conjunto de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. Nesse sentido, um programa de transferência de renda nos moldes do Bolsa Família é exemplo de iniciativa relevante e exitosa. Com o auxílio em mãos, a população em situação de vulnerabilidade teve, finalmente, segurança alimentar, com acesso a alimentos de qualidade em quantidade e frequência adequadas. Ao mesmo tempo, o programa criou condicionalidades para que as famílias mantivessem o benefício – era uma forma de incluí-las nas redes de saúde, educação e assistência social.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar é outra política pública com destaque internacional. Nos últimos anos, a ação estabeleceu limites mínimos para a compra de alimentos in natura e minimamente processados e valores máximos para a compra de opções ultraprocessadas, protegendo a população estudantil de desenvolver doenças crônicas.
Apesar dos bons resultados, essas e outras ações têm sido fragilizadas ou descontinuadas, refletindo nas situações que vemos hoje – seja na imprensa, seja nas ruas. A defesa e a promoção da alimentação adequada e saudável dependem de políticas públicas estáveis e estruturadas. O campo da educação em saúde também tem seu papel: a disseminação de guias alimentares que orientam as pessoas a reduzir o consumo de ultraprocessados e induzem políticas que ampliem o acesso à comida de verdade pode levar a transformações positivas no ambiente alimentar. Só com iniciativas como essas é possível manter a saúde da população e ver nossa cultura alimentar fortalecida, com arroz e feijão no prato dos brasileiros.
(*) Patrícia Constante Jaime é vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.