“Ambiências” de ensino no pós-covid
Pestes e pandemias sempre deixam seus restos! Em geral, para as ciências sobram muitas experiências interessantes a serem pesquisadas e tematizadas, desde os aspectos médicos, biológicos e químicos sobre vírus, doenças e suas possibilidades de cura e de manejos em pandemias, até as mudanças nos comportamentos e relações sociais diante das situações de confinamentos, quando as pessoas são obrigadas a assumir uma prontidão outra diante do mundo e das coisas.
Sobram também lições suficientes para combater a onipotência e o positivismo exacerbado, sobretudo daqueles que banem as diferenças e afirmam uma subjetividade universal posta acima das heterogeneidades – refiro-me àquelas facções anglo-saxônicas que pretendem convencer repetindo chavões de clarividências, “está cientificamente comprovado”, “as evidências são irrefutáveis”, que são incautamente repetidos nos documentos dos atuais “donos” do Ministério da Educação, que querem implementar o Método Fônico de alfabetização alegando “evidências internacionais” e privatizar o que for possível do sistema educacional brasileiro.
Uma das perspectivas em relação ao pós-covid-19 que vem agitando o mundo da educação é este atual funcionamento do ensino – “especial”, “anormal” – quando não se têm mais as turmas e seus educadores atuando presencialmente no ambiente escolar, quando se muda a ambiência de ensino e aprendizagem – estamos tomando a palavra “ambiência” aqui na acepção da arquitetura, que a distingue de mero ambiente físico, com seus espaços, mobiliários e equipamentos – ambiência é também o ambiente, mas perpassado e matizado por laços sociais, costumes e tecnologias humanos, ou seja, é um espaço sociopsíquico e histórico. Nesse sentido, quando a ambiência escolar é amplamente dividida com a família, sobretudo no ensino básico, estamos diante de uma mudança considerável na concepção de ensino, ou seja, está-se compartilhando o próprio modo de funcionamento da escolarização oficial, estendendo e esgarçando a ambiência de ensino de tal forma a abrir o campo para as mais diversas possibilidades, sobretudo quando este é alvo de investidores pragmáticos, que visam a transformá-lo em um mercado rentável a qualquer custo e de religiosos que se aproveitam para impor seus fundamentalismos.
A presença da família em casa, cumprindo quarentena (que é de anos e não de quarenta dias), pais e filhos juntos experimentando uma situação inusitada, que é a de trabalhar e estudar em casa, usando, entre outros, seus computadores, tablets e celulares e com todas as possibilidades de os pais exercerem sobre a formação dos filhos uma situação panótica especial, que inclui análises e julgamentos sobre as aulas de seus professores. “Panótica” porque exercem vigilância tanto direta (olhando cada detalhe das aulas e lições a serem feitas) como indiretamente, quando levam os filhos a imaginarem que a lição, a redação, o exercício, as aulas dos professores poderão a qualquer momento ser vistas e revistas pelos pais, ou seja, lançam a poderosa sombra de vigiadores sobre vigiados, levando estes ao próprio ato de se autovigiarem com o peso inoportuno de um olhar esmagador.
Neste novo contexto, muitas famílias, que em tempos normais demostravam parcos interesses em acompanhar a escolarização dos filhos, agora estão ali, ao lado deles, vendo aulas gravadas ou síncronas de professores até então ilustres desconhecidos, exercendo uma função que antes não estava ao alcance dessa tutela familiar: monitorar e julgar os conteúdos escolares e a performance desses professores e, com isso, criar este novo panotismo. Poucos deles sabem que o conhecimento requer liberdade, intimidade, laços com outros diferentes do outro familiar – que só é possível crescer autonomamente enfrentando diferenças e ressignificando e expandindo os conhecimentos que vêm dos laços familiares.
Acredito que o sonho de monitorar e controlar tudo o que se ensina aos filhos seja um desejo antigo de famílias e comunidades, sobretudo das mais religiosas. Daí os sistemas de ensino já terem sido cerceados e regulados discursivamente por igrejas, governos, entidades regionais ou nacionais, de tal forma que sua própria estruturação já traz todas as marcas desse controle – por exemplo, a luta para que a educação se mantenha laica é uma vitória discursiva nessa contenda que demorou a chegar.
Ao lado de todo esse arsenal discursivo ainda há um outro, talvez pouco estudado pela educação: os ciúmes que boa parte dos pais sempre manifesta em relação aos professores terem alcançado o direito de educar crianças e adolescentes assumindo um programa alheio aos desejos, preceitos e religiões familiares. Pais onipotentes gostariam de educar seus filhos com exclusividade para preservá-los de supostas más influências que a escola poderia trazer para a família. Por ser pai ou mãe, reivindica para si o direito exclusivo e psicótico de dominar todos os detalhes da formação do filho, de tal modo a fincar seus mourões sem deixar muito espaço para a riqueza das eventualidades. Foucault bem diz que o discurso é a forma de exorcizar acontecimentos aleatórios, ou seja, de não permitir surpresas que desestabilizem o que foi estruturado antes. Como professor e coordenador de ensino básico constatei essa reivindicação paterna, essa ciumeira, durante quase duas décadas. Talvez não seja por acaso que a ideia de homeschooling tenha sua origem em religiões não católicas, que desejavam ensinar os filhos de seus adeptos procurando garantir que as surpresas de um conhecimento vindo de um outro muito extenso e diferente não afetassem o mercado futuro da entidade. Ao filho de peixe, a religião e os pais onipresentes preferem garantir que se é, sim, peixinho, mas de aquário!
Também não vejo com estranhamento o fato de essa ideia, com um bom pé na eugenia, ter acelerado sua força com a eleição de Bolsonaro, que é um (des)governo que se diz nacionalista-religioso, mas que desestrutura o Estado para privilegiar o mercado e as religiões evangélicas neopentecostais, ambos sequiosos por um domínio mais amplo da fatia de lucro e de um exercício de poder mais direto sobre a educação. Bolsonaro tem como referência ideal de governo uma república fundamentalista, sem Congresso, com o Judiciário submetido ao Executivo e estes compartilhados com os subservientes pastores evangélicos. No atual contexto, ele seria ditador iluminado por Deus, ainda que todo o poder esteja com os militares (essa tem sido uma das exigências para se ter o apoio deles). Aos bispos e militares, hábeis dominadores da relação da submissão religiosa e patriótica, caberiam os ministérios mais estratégicos para a mudança dos costumes laicos. À oposição seria atribuída uma pecha com justificativa religiosa e submetida a perseguições, sem tréguas. O desejo perverso dos Bolsonaros e de seus mentores (Steve Bannon e Olavo de Carvalho) é limpar o caminho, eliminar a esquerda e quaisquer outros empecilhos a uma ditadura fundamentalista. Não é por acaso que gastam tanta energia com o negacionismo, para eles as ciências e os cientistas são de esquerda.
A tal homeschooling, nesta versão, é uma mão na roda nisso tudo, pois nega a educação laica, protegida pela Constituição, e reivindica que famílias e religiões possam ter acesso direto às definições curriculares e programáticas do ensino. Questiona ou mesmo exclui alguns objetivos escolares laicos que expõem profundamente à análise dogmas religiosos, entre tantos, a ideia de estado e educação laicos, além das temáticas científicas que põem em xeque os pilares fundamentais da religião (origem da vida e do universo, a complexidade da sexualidade humana, a questão dos gêneros, as liberdades individuais e direitos de minorias, a (im)possibilidade da ressurreição, enfim, renegam o primado das ciências e das artes) – tudo isso engrossa o caldo dos negacionistas, dos que querem uma ciência e uma educação religiosas.
Educados em casa, por pais ou por alguém da religião, os filhos dessa gente não seriam submetidos a tensões discursivas, escapariam das contradições fundamentais da vida, que é a convivência na diferença. A tal homeschooling, que não deixa de ser adepta da “escola sem partido” e do “negacionismo”, faz o mesmo jogo, não aceita que professores tenham opiniões, que possam exercer a dinâmica do ensino de forma a exercitar o debate com os conteúdos que os alunos trazem de suas casas.
Se o professor enfatiza aqui ou ali um conflito social ou se empenha em provar que temos uma origem comum com os macacos, os pais estarão ali para contrapor o professor. Por outro lado, os novos donos de escola (que não são muito diferentes dos bispos neopentecostais que pedem dinheiro na TV!) estão vendo este novo contexto com muito bons olhos e já apressadamente começam a imaginar e a providenciar um pós-covid-19 apostando nessa ampliação da ambiência escolar para a familiar por meio da internet. Desconfiam que aí moram todas as chances de lucro máximo para “novos” empreendimentos comerciais sobre a escolarização.
Neste contexto atual, defensores da homeschooling também estão em euforia porque imaginam que podem aproveitar essas estranhas experiências como argumentos que reforçam a ideia de que crianças podem ser educadas em casa, que a escola poderia se resumir à tarefa de manter um banco de aulas, de cujos conteúdos e temas pais e religiosos poderiam tirar o que julgarem essencial para a educação de seus filhos e adeptos. Do mesmo modo, os investidores preconizam uma “revolução” na educação pós-covid-19, pois agora, segundo eles, estaria provado que as escolas podem até ficar meses fechadas, que o ensino a distância tem condições de suprir boa parte das aulas presenciais. Reduzir custos com professores, comprar, vender ou alugar “bancos” ou pacotes de aulas e de conteúdos escolares nacionais e internacionais a baixo custo; adotar metodologias objetivas como era o sonho dos behavioristas, com suas lições em “pequenas doses” e com feedback imediato tornou-se mais fácil, as máquinas com vozes de professores podem dosar os conteúdos e dar feedbacks imediatos com vozes meio robóticas, “mas até divertidas”. Imaginam que a própria família pode alfabetizar, ensinar as bases da matemática, graças a esses programinhas quase gratuitos fornecidos pela escola ou pelos parceiros do mercado, um estudo mais que dirigido, panotizado e negacionista – como quer a extrema direita.
Ah, mas e a interação dessas crianças com outras? A vida social delas com amigos e colegas da mesma idade ou a relação com adultos que não os da família?, pergunta um contestador. Ora, isso elas obtêm no clube, na igreja, com nossos parentes e é quase de graça!, responde a religião.
Pra engrossar mais o caldo, não me estranha se a flexibilização “neolibê” aparecer com a escola das liberdades individuais (“ultralibê”), com horários feitos pela família, com algumas aulas presenciais opcionais para atividades práticas, talvez laboratórios, educação física, tira-dúvidas, eventos comemorativos, provas objetivas etc. Uma escola uberizada, pronta para atender qualquer tipo de família com pagamentos orçados de acordo com o uso – um aplicativo dirá quanto a família usou a escola e a despesa será lançada no cartão ao final “da corrida”. Do mesmo modo, arma-se a tentação de dispor de educadores que serão pagos de acordo com a satisfação dos clientes que cativarem com suas performances virtuais – talvez até tenhamos aí, para a escola dar de brinde, a figura do performer famoso, que se aluga para várias escolas cobrando sempre o seu preço de mercado – a família compra tantos pacotes de conteúdo, aluga tantos professores e ganha de brinde um desses conferencistas bons de mídia, que em geral são rasos, mas bem divertidos. A família, em seu neoliberalismo-fundamentalista, poderá escolher o nível de contato, a religião, a ideologia do professor, quantas e quais aulas presenciais no pacote com descontos e exigir seus brindes quando acumulam pontos.
Não tenho dúvidas de que a “sociedade da inteligência”, que viria com as novas tecnologias segundo os mais entusiasmados, também esteja avançando nos dias de hoje, mas ainda não se compara à extensão abrupta da irracionalidade, que salta a passos largos, contrapondo-se aos avanços sociais que o mundo conseguiu a duras penas nos últimos séculos – não dá para não evocar aqui a pintura de Georges Grozs A bestialidade avança (está no acervo do Masp).
A educação que ora tenta se alicerçar para o pós-covid deve reforçar ainda mais o avanço da mediocridade, de uma formação que já nasce estabelecida pela família, sem possibilidades de questionamentos e de subversões. Por exemplo, disparar fake news de baixo nível para desinformar e favorecer esta ou aquela linha política é um dos avanços dessa “inteligência” perversa; um outro exemplo: criar empresas digitais de fachada cujo único objetivo é formar bancos de dados e classificá-los ideologicamente para criar bolhas difíceis de serem dissolvidas, garantindo assim um público isolado, um aquário fácil de manipular e isento de críticas de outros, pois, por mais que alguém se esforce para furar as bolhas, jamais conseguirá o mesmo sucesso sem lançar mão de ações criminosas na manipulação de dados sobre as vidas e hábitos de milhões de pessoas – ou seja, a esperteza parece dispensar a ética, coisa que poderíamos nomear como “esperteza-Zuckerberg-Bannon” – modelitos da ultradireita.
A forma como se elegeram Trump e Bolsonaro é exemplo claro dessa nova patifaria. O processo foi tão vantajoso a Bolsonaro que ele e seus filhos continuam usando o esquema das fakes news para não perderem apoio e, ao mesmo tempo, desautorizar seus adversários achincalhando-os com mentiras baratas, mas suficientemente emotivas para que pessoas não acostumadas minimamente à complexidade da política acreditem e se perfilem ao lado do capitão do mal. Cultivar em aquários altos porcentuais de peixinhos adestrados e fiéis permite a Trumps e Bolsonaros romper com toda a tradição de cordialidade e de racionalidade no exercício de seus mandatos. A escola-aquário parece se dar bem com a politicagem de aquário e a prática de fake news pode ser considerada o ponto comum entre política e educação ultralibês. Apartar as diferenças é a meta tanto de fascistas como de defensores do “Escola sem partido”, da “homeschooling” e dos projetos dos empresários modernosos da educação contemporânea – estão todos juntos na mesma jornada.
Mais do que nunca precisamos de debates, discussões, aprofundamentos, quebra de aquários e bolhas ideológicas, que só uma educação com lastros solidamente presenciais seria capaz de pôr em discussão de forma plural e livre. Mais do que nunca precisamos de professores bem-formados, politizados, capazes de polemizar o conservadorismo, as proliferações fakes e outras doutrinações que vêm via redes sociais. Mais do que nunca precisamos trazer a complexidade analítica para dentro das escolas como forma de combater essa mediocridade política que parece ter virado moda. Noto muitas pessoas ativas na rede, que compartilham informações de baixo nível, atacam ou se defendem com agilidade, mas de forma puramente emotiva com xingamentos bobos, sem sequer se preocuparem em saber de onde vieram as informações, mas que quando se lhes exigem um pouco mais de explicações, caem fora, resumem tudo com um “é isso aí”, “talkei” e dão por finalizada a discussão.
A grande perversão de tudo isso é que as religiões estão sempre implicadas em tudo. Tudo se faz em nome de Deus, de Jesus, de Nossa Senhora etc. Uma pessoa religiosa que resolva postar imagens de Nossa Senhora ou orações por algum tempo no Facebook ou no WhatsApp em breve receberá dezenas de fake news e convites para exercer o ódio contra supostos ateus e comunistas e se protegerem ou se sentirem protegidas no aquário da família religiosa.
A escola presencial, livre das influências religiosas (de todas elas) e dos desejos e ansiedades mais imediatas dos pais, é e deverá continuar sendo a ambiência saudável do crescimento intelectual, das possibilidades, por exemplo, de um jovem mudar seu destino familiar, de se reposicionar subjetivamente em relação às trilhas repetitivas da cultura dos pais. Boa parte dos exemplos de cientistas, escritores, artistas bem-sucedidos no mundo tem a ver com rupturas ou ampliações abruptas da ambiência familiar. Qual seria a ambiência mais propícia para que uma criança ou adolescente reúna condições de se descolar e se diferenciar minimamente dos pais? A do clube? A da igreja? A da família? Não seria a escolar, na qual o aluno de fato se encontra com a diversidade e com adversidades e é obrigado a se reposicionar constantemente diante de um outro mais difuso e complexo do que o familiar?! Não é na diferença que a saúde psíquica se reforça em seu jogo de alteridade?
Muita gente vem dizendo, com razão, que as linhas de força do discurso que subsistirão à covid-19 já vêm sendo tecidas nas últimas décadas e os nós mal-ajambrados para fechar propostas decentes ou indecentes estão sendo dados agora, neste momento singular em que a anormalidade vai se tornando regra. Portanto, discutir esse tema é vital para que pesquisadores, professores, sindicatos, grupos, áreas de ensino, movimentos estudantis e outras organizações tenham o que propor e o que dizer a respeito, antes que empresários, religiões e grupos neofascistas abarquem e açambarquem tudo.
(*) Claudemir Belintane é professor sênior da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo)