Brasil 2022: um ano decisivo
Nos últimos 50 anos temos construído um processo de cidadania planetária no qual se busca o enfrentamento dos desafios representados pelo aquecimento global, erosão da biodiversidade, acidificação e plásticos nos oceanos numa escala global, marcada por uma dimensão de irreversibilidade.
A Conferência de Estocolmo em 1972 foi fundamental porque representou uma tomada de consciência sobre a dimensão planetária da questão ambiental, lançando os pilares para futuras políticas nacionais, consagrando direitos e instrumentos hoje universais. Também foi determinante a criação do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) Tímido nos seus anos iniciais, adquiriu maior importância mais tarde, embora não tenha se transformado numa organização potente como a OMS (Organização Mundial de Saúde).
Esses comentários iniciais são importantes para se compreender a criação da SEMA (Secretaria Especial do Meio Ambiente), em 1973, e a edição da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981. Ambas são desdobramentos de Estocolmo. Elas traduzem o desafio de institucionalizar na esfera interna dos países decisões da comunidade internacional, instrumentos legais sancionatórios, até então inexistentes, em face à soberania dos países integrantes das Nações Unidas.
No caso brasileiro, é importante lembrar que o Brasil teve uma postura reativa às preocupações ambientais lançadas em Estocolmo sob a ótica de que o grande desafio nacional seria o crescimento econômico a qualquer custo, sendo a poluição sinônimo de progresso. Nessa perspectiva haveria uma “conspiração em curso“ contra os países em desenvolvimento com a finalidade de impedir ou mesmo retardar suas estratégias de crescimento econômico. As preocupações ambientais não passariam de cortina de fumaça dessa conspiração.
Nesse período também surgem debates importantes provocados pelo livro “ Limites do crescimento“ do Clube de Roma, indicando a necessidade de se repensar a capacidade do planeta de “assimilar os efeitos da poluição“ e a finitude dos recursos naturais.
Por sua vez entidades não governamentais ganham inegável espaço político, como expressão legítima de representação da sociedade civil perante os governos nacionais e a própria comunidade internacional. São exemplos o Greenpeace e a Anistia Internacional, com uma agenda de defesa dos direitos humanos e políticos e bandeiras ecológicas como fim da caça às baleias e testes nucleares, entre outras.
Mas é na década de 1980 que há uma virada importante na percepção da questão ambiental, tendo como gatilho principal a constatação da existência do enorme buraco na camada de ozônio sobre a Antártida. Se até então havia indícios de que o planeta estaria sob impacto da ação humana, com a divulgação daquelas imagens de satélite se comprovou que os danos seriam incontentáveis e planetários. Na época se verificou que a causa do buraco foi o lançamento na atmosfera de substâncias geradas por tecnologia de refrigeração inexistentes até então na natureza. Ou seja, produtos de uso cotidiano como geladeiras, equipamentos de ar condicionado, propelentes de aerossóis usados em desodorantes e cosméticos estavam provocando danos graves na camada natural de proteção à vida no planeta.
O impacto dessa divulgação foi imediato, mobilizando a opinião pública mundial e resgatando de certo modo a agenda de Estocolmo, mas dessa vez com protagonismo marcante da sociedade civil, mídia e comunidade acadêmica. Nesse cenário assume relevância a formação da Comissão instalada pelas Nações Unidas para avaliar Estocolmo, liderada pela primeira ministra norueguesa Gro Brundland.
O que, a princípio, seria mais uma Comissão condenada à irrelevância entre inúmeras outras, a Comissão Brundlant se torna a grande referência dos debates mundiais, com a divulgação do relatório “ Nosso futuro comum “, no qual são tratados os temas com várias recomendações sob o título “ Meio ambiente e desenvolvimento “. Ali se consolida a ideia do “Desenvolvimento sustentável”, contrapondo-se à sinonímia de crescimento econômico e desenvolvimento, com destaque para a sobrevivência das futuras gerações, na medida em que seria necessário pensar não apenas em um balanço entre pobres e ricos nos países, mas entre as atuais e as futuras gerações.
Nada mais importante nos dias de hoje quando o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) aponta que se não reduzirmos dramaticamente as emissões de gases efeito estufa, estaremos condenados ao caos climático, com danos e consequências irreversíveis.
A resposta dada pelas Nações Unidas foi a convocação da Conferência do Rio, intitulada, não por coincidência, o título de Conferência mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento.
Aqui cabe dizer que a escolha do Brasil como sede da Conferência se deu por algumas razões. O país estava na berlinda em razão da divulgação pelo INPE das queimadas na Amazônia e o pelo assassinato de Chico Mendes no Acre, atraindo olhares da opinião pública internacional. A reação do governo brasileiro foi se oferecer para ser a sede da Conferência, em uma estratégia de enfrentamento às críticas internacionais. Bom lembrar que essa oferta se deu no governo Sarney (1985-1990) que, no plano interno, criou o Programa Nossa Natureza como demonstração de seu compromisso com as temáticas ambientais, que resultou em importantes mudanças na legislação brasileira por força da atuação do Congresso Nacional.
Foi assim que obtivemos uma nova legislação sobre agrotóxicos, aconteceu a criação do Fundo Nacional do Meio Ambiente, modificamos o Código Florestal, com ampliação da reserva legal e criação de áreas de preservação permanente (APP). Ocorreram ainda mudanças importantes na Política Nacional do Meio Ambiente com objetivo de promover sua atualização perante a Constituição de 1988.
A realização da Conferência do Rio promoveu uma mudança de patamar no tratamento das questões ambientais no mundo com a Convenção do Clima e da Biodiversidade, além da Agenda 21. Além do próprio processo de negociação multilateral, engajando governos nacionais, sociedade civil, agências multilaterais, instituições científicas, a Conferência contribuiu para um novo desenho na arquitetura e conteúdo da agenda mundial para o ambiente.
A Rio 92/Eco 92 foi o grande passaporte para o Brasil se firmar como protagonista no desenvolvimento sustentável, nas mudanças climáticas e na biodiversidade. No primeiro, por concentrar os desafios de se desenvolver com crescimento econômico e simultaneamente com combate à pobreza e desigualdade social. No campo do aquecimento global, pela sua contribuição em termos de gases efeito estufa decorrentes do desmatamento no bioma amazônico e cerrado. E no que tange a biodiversidade, por ser reconhecidamente megabiodiverso, abrigando riqueza de espécies, biomas e conhecimento científico sobre o mesmo, além dos ditos saberes tradicionais. Pode-se afirmar que o Brasil talvez seja um dos melhores exemplos de exercício do chamado “soft power” nesses temas, devendo -se isso a um conjunto de capitais: disposição política, qualidade da diplomacia brasileira, capacidade da comunidade científica e acadêmica e grau elevado de organização da nossa sociedade civil.
E no campo empresarial merecem destaque mudanças importantes de atitude em várias áreas, a exemplo da instituição do ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), na Bolsa de Valores de São Paulo, estimulando as empresas brasileiras com ações no mercado de capital a assumirem compromissos públicos com os seus investidores e consumidores.
Com maior ou menor intensidade, os governos nacionais desde Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer (entre 1990 até 2019) mantiveram o país alinhado ao exercício de seu “soft power” nas grandes negociações internacionais e no plano doméstico, no avanço da governança ambiental em termos de capacidade institucional e de novas legislações. A participação brasileira foi sempre reconhecida no combate às mudanças climáticas, quer no Protocolo de Quioto, quer no Acordo de Paris. No campo da biodiversidade, no Protocolo de Nagoya e na desertificação, na aprovação da respectiva Convenção. Na Conferência Rio + 20 tivemos um grande papel na proposição dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados pela Assembleia Geral em 2015.
De tudo o que foi dito até aqui é inegável que nas últimas décadas, o Brasil adquiriu relevância e protagonismo nas instâncias multilaterais e, ainda que com muitos desafios, avançou no plano doméstico em suas posições e políticas nacionais. Como contrapartida ganhou capital político e reputacional estratégico na comunidade internacional, na opinião pública mundial e no ambiente empresarial, cada vez mais engajado no enfrentamento das mudanças climáticas, perda da biodiversidade, gestão dos recursos naturais e combate à pobreza e desigualdades sociais.
A partir de 2019, entretanto, com o governo Bolsonaro, estamos assistindo a uma evidente ameaça aos ganhos adquiridos, graças a um discurso tosco e negacionista no plano internacional, associado a um deliberado projeto de desmantelamento da governança ambiental nacional. Com a ameaça de se retirar do Acordo de Paris a diplomacia brasileira se viu rigorosamente constrangida logo de início, sendo que a postura da delegação brasileira na COP 25, em Madri, se mostrou beligerante e pouco construtiva, agravando nosso isolamento diplomático.
Com o aumento do desmatamento na Amazônia nesses últimos anos em face à desídia do governo federal, nossa vulnerabilidade reputacional se ampliou exponencialmente, não apenas perante a opinião pública e sociedade civil, mas agora frente ao setor financeiro e empresarial mundial, hoje cada vez mais preocupado com os riscos associados ao aquecimento global.
Desde Paris há um enorme movimento no sentido de se incorporar os riscos climáticos na atuação dos bancos centrais, reconhecendo sua importância na economia global e na necessidade de que as empresas reconheçam e divulguem perante seus investidores como esses riscos podem afetar seus negócios.
Nos setores exportadores nacionais, especialmente no agronegócio, existe o receio legítimo de que podemos perder acesso a mercados importantes, como o europeu, em face às políticas do governo Bolsonaro em relação a destruição da Amazônia e do Cerrado, além do enfraquecimento institucional do sistema nacional do meio ambiente. Esse desmantelamento se reflete na redução dos recursos orçamentários dos órgãos ambientais, com respectivo aumento das práticas de grilagem de terras públicas e desmatamento. Além de iniciativas no Legislativo patrocinadas pelo Governo através de sua base parlamentar, como o esvaziamento do licenciamento ambiental, aprovação de regularização fundiária sem salvaguardas ambientais, entraves à criação de marco regulatório instituindo mercado de carbono no país.
São tantos os exemplos que confirmam o perfil antidemocrático, negacionista e atrasado desse governo que os impasses hoje claramente colocados remetem a várias instâncias. No âmbito do Judiciário, notadamente no Supremo Tribunal Federal, medidas de salvaguarda dos preceitos constitucionais que garantem expressamente a cidadania ambiental das presentes e futuras gerações.
Preceitos constitucionais amparados nos compromissos do país consubstanciados em praticamente todos tratados internacionais firmados desde Estocolmo, reforçados recentemente pela recentíssima ideia de incluir o direito ao meio ambiente sadio como um dos direitos humanos.
Mas talvez a instância mais importante será a das eleições de 2022, na qual celebraremos os 50 anos de Estocolmo e 200 anos da Independência. Teremos aí o encontro entre as aspirações de uma cidadania planetária com os desafios de uma eleição presidencial e parlamentar que vai permitir ou desautorizar o país a continuar sua trajetória de liderança na construção de uma cidadania planetária.
Fábio Feldmann(*) é ambientalista, ex-deputado constituinte e autor de importantes legislações brasileiras como Lei da Mata Atlântica, educação ambiental, entre outras. Participa de importantes ONGs nacionais e internacionais ligadas à defesa do meio ambiente como SOS Mata Atlântica e Greenpeace. Um dos primeiros políticos brasileiros a se engajar no tema das mudanças climáticas.