Brincar nos carnavais é reavivar o tempo
O carnaval é uma festa mundial, realizada sob diversos princípios, organizada e performada em diferentes contextos, linguagens e estéticas. Um dos consensos é a celebração dos corpos, conjuntamente, na fricção e fruição das subjetividades e experiências de cada lugar onde é realizado. Poderíamos, então, pensar nessa grande celebração não como uma prática singular, mas plural.
Com efeito, os carnavais conotariam princípios e narrativas que dialogam com as diferentes comunidades e territórios onde são fabulados. No contexto brasileiro, de proporções continentais, não seria diferente: os carnavais evocam suas diferentes histórias e memórias, promovendo uma conjunção entre tempo e espaço. Carnaval aqui é assim, lá e acolá é assado! Uma festa viva, brincante, livre e em movimento.
A brincadeira, pensada aqui como fabulação de si e do tempo, assume um sentido amplo, não ligado somente ao jogo e ao prazer, mas à capacidade de reinvenção e subversão das realidades.
Os carnavais brasileiros agenciam as dinâmicas das práticas que constituem sua formação e acionam pontos-chave que dizem respeito ao nosso tempo. Refletir sobre os carnavais no Brasil inquere inevitavelmente pensar a sua população, sobretudo na sua maior parcela, constituída por pessoas negras. Se voltamos na brincadeira para lembrar que o carnaval reflete o tempo e o espaço, percebemos as experiências negras em sua infinita complexidade.
Habita aqui uma importante reflexão: a ideia metafórica-filosófica do carnaval como inversão – alicerçada nos cânones eurocentrados, não daria conta dos fluxos brincantes no nosso território. As experiências negras agenciadas nos carnavais brincam nas suas dinâmicas sociais. Não à toa temos como corpo estético majoritário nos festejos os corpos negros, remontando experiências cosmogônicas ancestrais como fabulação de si.
Orixás, encantados, pretos velhos, elementos da natureza, povos originários, o continente-mãe; todo o arcabouço repertorial afrobrasileiro se projeta nos corpos em performances muito mais amparadas na potencialização das subjetividades do que na sua negação.
Nas escolas de samba temos vastos exemplos, desde elementos fixos, como a ala das baianas, até as narrativas dos sambas enredos. A estética, campo compreendido desde a semântica afrocentrada como “para além do adorno”, apresenta um universo sinestésico que é apreendido não somente pela visão, mas por todos os demais sentidos do corpo. Com o espelho de Oxum, brincamos nos vendo e vendo os nossos ancestrais em reflexo. A brincadeira é atemporal!
Evocar o tempo na brincadeira nos arremessa também para um outro jogo, o de produzir vida. Historicamente temos os carnavais como lugar de fruição e socialização. Se brincamos no tempo e voltamos ao passado da escravização, temos no período do carnaval, marcado no calendário cristão, a possibilidade única do toque dos tambores negros em praça pública, que animavam os brancos que se permitiam deslocar dos papéis sociais – estes, sim, tendo a premissa da inversão como roteiro.
Para as pessoas escravizadas, os toques, cantos e danças mantinham e renovavam a conexão com a ancestralidade, com o continente africano, e com a capacidade de manter o projeto de continuidade e sobrevivência. A brincadeira nos carnavais daqueles tempos produzia, fortalecia, potencializava e mantinha a vida individual e coletiva.
Temos como herança estético-filosófica a brincadeira como tecnologia de retornar ao passado para lembrar quem somos, de onde viemos, a fim de que possamos elaborar no presente os repertórios que contam nossa história para além da visão da dor.
Quando brincamos nos carnavais com as peles das tradições africanas e afrobrasileiras, estamos avivando um tempo de vida do passado que é experienciado no presente e projetado em direção ao futuro em forma, discurso e fundamento. Brincar nos nossos carnavais compromete uma reflexão ampla sobre nossas histórias positivas, que nos referenciam na construção de futuros possíveis. O carnaval é um portal! Para acioná-lo é preciso consciência e comprometimento sincopados na cadência dos toques dos tambores!
(*) Thiago Pirajira Conceição é doutorando no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS.