Campo Grande, a cidade que ofereceu tudo que eu precisava
Sou campo-grandense há 50 anos, mas faço parte da geração que nasceu em Mato Grosso. Naquele tempo, o único Estado brasileiro com Sul no nome era o Rio Grande gaúcho. E mesmo com tanto tempo de vida, convivi pouco com minha cidade. Nos últimos 33 anos, possuo mais horas de viagens ida e volta do que noites dormidas sob este céu.
Sou filho de um pai nômade: quando completei cinco anos já estava no meu quarto endereço diferente. E embora tenha nascido na Cidade Morena, só fixei residência por aqui pela primeira vez na década de 1980 – e por poucos carnavais. Antes de 1990 chegar, o sangue vagamundo me impulsionou, novamente, para longe das raízes.
Remexendo no porão da memória reconheço minha ingratidão com o tempo, com o espaço e com os laços fraternos. Hoje, vejo que Campo Grande me ofereceu tudo que precisava. Como cheguei à adolescência com mais dúvidas do que inteligência, não entendia que a cidade gostava de mim: eu vivia num bom endereço; estudava numa boa escola; estava no seio de uma boa família; era querido por bons tios, tias e primos; encontrei bons amigos e, às vezes, conquistava bonitas paqueras.
A cidade me deu até um bom emprego, aos 14 anos – ali na mesma agência bancária que ainda ocupa um prédio de seis andares na esquina da Afonso Pena com a 13 de Maio. Depois das aulas naquela boa escola que citei – que ainda fica na Av. Mato Grosso – caminhava pela mesma 13 de Maio rumo à labuta de quatro horas (com ar condicionado, aliás). São passagens como essa que nos levam àquela tardia conclusão: era feliz e não sabia.
As coisas se encaixavam tanto que recebi meu primeiro salário no primeiro dia de trabalho (proporcional restante do mês) numa sexta-feira, 19 de abril. No domingo, 21, morreu Tancredo Neves, o presidente eleito pelo voto indireto, mas que não conseguiu tomar posse. Segunda, 22, foi feriado póstumo. Ou seja, trabalhei um dia, folguei três e ainda recebi dez adiantados. Claro que tudo dava certo para mim.
Mesmo assim, não gostava daquela rotina. Era bem inseguro. Formei meu caráter, mas não desenvolvi a personalidade. Não conseguia ter orgulho de tudo ao meu redor. Mas deveria porque, afinal, no Estado e na cidade havia duas boas universidades públicas; um estádio de futebol e dois grandes times com expressão nacional; um dos maiores rebanhos bovinos do mundo; excelentes veterinários e três dos principais biomas do país: pantanal, cerrado e mata atlântica. Nunca teve praia, mas onde fica mesmo Bonito?
Na minha razão, a cidade só pulsava se eu pudesse dirigir meu próprio carro até o recém inaugurado prolongamento da Afonso Pena. Ali, em meados da década de 1980, do shopping à entrada do Parque dos Poderes, o cerradão predominava em ambos os lados da via. A cidade parecia terminar na Rua Ceará.
A animação por lá era fazer poses e caretas enquanto os ‘Mauricinhos’ desafiavam motores e consumiam pneus nos rachas irresponsáveis – num deles, perdi um amigo também adolescente, que nem dirigindo estava.
No início, a extensão da avenida até o Parque escondia esta pobre finalidade: divertir garotos sem projeto de vida. Não era para ser desta forma, pois a cidade sempre foi rica. Os edifícios residenciais erguidos na parte leste desde o início do novo século – uma segunda cidade para quem tem mais de 30 anos – comprovam que a prosperidade, neste chão, é inata.
Outro desfrute dos filhos da classe média alta (da qual, definitivamente, não pertencia) era frequentar os ‘points’ da moda: Parks, Mister West, Rádio Clube, Chattanooga... Considerando esta circunstância, Campo Grande só exigia comportamento fútil de quem a enxergasse superficialmente – e era o meu caso.
Voltei em definitivo, por amor e por gratidão. Minha vida brotou neste solo, agora vou regá-lo diariamente. Aqui vou passar o restante dos meus dias, seja quantos sobrarem. Descobri o potencial deste inteiro ambiente tardiamente, a cada breve visita que fiz desde julho de 1988, quando fugi do meu destino – e sem bússola.
Campo Grande é o que o próprio nome diz, um espaço infinito, ilimitado tal qual o horizonte. A cidade precisa de moradores com atitude, diferentes do adolescente que fui: que goste dela e a trate com respeito. No mais, o resto ela faz pela gente.
*Marcelo Nantes é jornalista e acaba de retornar a Campo Grande, após décadas em Brasília.