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Cultura pantaneira em verso e prosa

Arlinda Cantero Dorsa (*) | 03/09/2023 10:20

Nas comunidades pantaneiras tradicionais sempre houve a valorização dos símbolos, responsáveis não só pela continuidade das tradições ali existentes como também pela forma de transmissão que se perpetua de geração a geração.

Percorrendo o pantanal de Mato Grosso do Sul encontra-se a permanência de manifestações culturais em uma rica combinação do português com o indígena. Segundo a visão do professor, contista e historiador Augusto Cesar Proença “há uma multiplicidade de culturas que influenciaram o homem pantaneiro e juntas passaram a habitar a paisagem do Pantanal e a imaginação do povo: [..] do português através do mameluco paulista, o Pantanal absorveu a maior quantidade de assombrações, representadas pelo lobisomem, pela mula-sem-cabeça, pelo pé-de-garrafa; figuras mitológicas de bichos, os mesmos que assombraram os meninos das nossas casas grandes e fantasiaram as ‘estórias’ que as mucamas contavam nos dias de chuva ao pé do fogão de lenha.

Essas figuras míticas, todas elas cercadas por lendas, misturavam-se com as dos índios: com a do maezão (uma espécie de pai-do-mato), com a anta bondosa que protege as crianças que entram ou se perdem no mato, com a do bicho-papão”.

Neste contexto, a cultura torna-se uma questão muito pertinente para a investigação do discurso e a busca de textos propicia um diálogo entre conhecimentos ideológicos e culturais, entendendo-se que a linha divisória entre cultura e ideologia pode ser traçada em cada época, porém, no que se refere às raízes históricas essa divisória flui de forma considerável.

De modo geral, os textos relativos à cultura sul pantaneira são de tradições orais, relativas às benzeções, lendas, lembranças, à vida cotidiana, rituais e festas, entre outros.

Herança quase sagrada

A sociedade representa um conjunto de grupos sociais que se organizam a partir de marcos de cognição social que constroem no grupo social um conjunto de avaliações representativas do mundo. De acordo com este pensamento, as comunidades compartilham crenças, hábitos e costumes que apresentam diferentes representações e atitudes rituais que embora sejam diversas, mantêm os mesmos objetivos e funções.

Sintetiza este pensamento a doutora em Letras, Albana Xavier Nogueira, quando afirma em relação às comunidades pantaneiras que: “Nessas comunidades, as práticas sociais eram e ainda são, muitas vezes, repassadas quase intactas para as gerações seguintes, responsáveis por transmiti-las a seus descendentes, assim como se fosse uma herança quase sagrada, um valor capaz de caracterizar uma ascendência, marcar uma estirpe, identificar os membros de um grupo social.

Essas comunidades são tidas, hoje, como comunidades tradicionais ou comunidades de cultura tradicional. Nelas costumam ser incluídos os camponeses, os indígenas e, por extensão, os ribeirinhos, os vaqueiros, os pescadores, os caiçaras, os artesãos, dentre outros grupos mais ou menos restritos, que participam de experiências das culturas tradicionais”. Importante enfatizar que o foco desta abordagem, volta-se para o pantaneiro típico, integrante das comunidades tradicionais, hoje, gradativamente descaracterizado.

Espaços místicos, religião, crenças

O domínio pantaneiro se estende por Mato Grosso do Sul, onde é mais extenso, adentra os chacos paraguaios e bolivianos e ao norte se alarga por muitos quilômetros em Mato Grosso. Cobre cinco importantes municípios de Mato Grosso do Sul como Aquidauana, Corumbá, Ladário, Porto Murtinho, e espaços nos municípios de Coxim, Rio Verde e Pedro Gomes.

É neste território que ele convive com simbologias que representam as crenças e práticas relativas às coisas sagradas. Para o antropólogo Clifford Geertz “Os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo”.

Nos exemplos a seguir, a questão das crenças e hábitos do povo sul-pantaneiro sob a ótica da religiosidade.

Capim de Ribanceira, de Almir Sater e Paulo Simões

Na madrugada e eu na beira da estrada / A lua cheia e minguada e de repente / Apareceu um cavaleiro de bota e chapéu de couro / Me lembrando o velho mouro / E lá “fiquemos” ele e mais eu // Cruzou os pés, “apiou” do seu cavalo / Deixou a “rédia” num talo de uma roseira sem flor / Diz que seguia pelo mundo solitário / E quebrava todo galho apartando a toda dor. // Quem não ouviu falar / Quem não quis conhecer / Aquele cavaleiro que vive pelas fronteira / Divulgando a reza brava / do Capim de Ribanceira. // Enquanto o bule de café bulia / A brasa da fogueira refletia o seu olhar / Eu pude ver / Que ele sabia coisa até do outro mundo / E essa noite eu fui aluno do seu estranho poder / Com sete pontas de uma rama trepadeira e uma / Arruda e a piteira / O meu corpo ele tocou / Naquele instante me bateu uma zonzeira / E duma tosse cuspideira o velhinho me livrou // E quem não ouviu falar / Quem não quis conhecer / Aquele cavaleiro que vive pela fronteira / Divulgando a reza brava / Do Capim de Ribanceira

Esta letra tem por referente o colonizador espanhol “velho mouro” caracterizado pela introspecção da cultura indígena com a cultura portuguesa e espanhola. Os autores representam valores positivos atribuídos aos conhecimentos indígenas para curar pessoas. Nesse sentido, a miscigenação cultural implica o cancelamento dos traços culturais do mouro para aquisição da cultura indígena nativa: “Curar com chá do Capim da Ribanceira”. Os valores negativos são atribuídos à solidão do velho mouro: “Aquele cavaleiro que vive pela fronteira divulgando a reza brava do Capim de Ribanceira”.

Segundo os autores, todas as pessoas que vivem na região sul-pantaneira já ouviram falar desse curador, e quem ainda não o conhece quer conhecê-lo, pois ele é objeto de crença com avaliação positiva na medida em que cura males.

Pantanal: Entre o Apego às Antigas Tradições e o Apelo às Mudanças, de Albana Xavier Nogueira

De seus antepassados portugueses, cuiabanos, poconeanos e dos indígenas, que habitaram a região e com os quais conviveu por longos anos, ora em paz, ora em litígios, o pantaneiro herdou e aperfeiçoou os saberes e práticas tradicionais, relacionadas ao uso da medicina caseira, dos chás, infusões, emplastros, estes últimos feitos com partes de plantas ou com graxa de animais, como carneiro, capivara e até pele de veado. Muitas vezes os remédios caseiros eram reforçados pela crença no poder mágico das simpatias e das benzeções.

Também os hábitos, relacionados ao trato com o ambiente, como o de construir aceiros, de queimar os campos, para que a brotação venha com mais força, de basear-se no tempo cíclico, de buscar a cura por meio de recursos míticos representam herança dos nativos da terra e integram as tradições pantaneiras, em decorrência das dificuldades em conseguir outros tipos de recursos para combater as doenças, provocadas, muitas vezes, por “mordedura” de cobra, por “rodadas” de cavalo. Essas práticas de cura, tradicionalmente cultivadas em tempos de outrora, encontram-se a caminho da extinção, posto que conta com estradas um pouco melhoradas e meios de transporte mais ágeis, o que facilita os contatos com as cidades mais próximas.

Este texto tem como referente o homem pantaneiro e sua herança relacionada ao aperfeiçoamento dos saberes e práticas tradicionais. Traz representado diferentes valores relativos ao homem pantaneiro: como valor positivo, a herança recebida de seus antepassados e que se perpetua em suas ações relativas às práticas tradicionais da medicina caseira; como negativo, pode-se perceber que à medida que os meios de transportes facilitam a busca de recursos em cidades mais próximas, as práticas de cura encontram-se em vias de extinção.

O “velho” constrói o “novo”

Os resultados obtidos da análise de textos como os de Almir Sater / Paulo Simões e de Albana Xavier Nogueira indicam que as raízes históricas do marco de cognição social do pantaneiro estão presentes nas representações discursivas, sendo que o “velho” constrói o “novo” a partir da cultura local.

Os povoadores do Pantanal possuem uma fé que se manifesta na evocação de santos e santas, na passagem de trechos da Bíblia, fé esta que pode ser definida como ingênua, dogmática e mística. Junto aos princípios mais antigos das elites dirigentes, a fé forma os substratos definidores fundamentais da cultura do povo pantaneiro.

É importante evidenciar que quando da chegada dos bandeirantes em terras do Pantanal, eles encontraram tribos indígenas com cultura e traços linguísticos próprios. A adaptação e assimilação dessas variadas culturas foram a base para garantir a sua sobrevivência na vasta região pantaneira.

As tradições voltadas à expressão da religiosidade no contexto pantaneiro, demonstram uma diversidade de saberes, de posturas e de relação com a natureza, baseada na valorização do passado permeado pelos símbolos e objetos que perpetuam as experiências vividas pelas gerações passadas.

(*) Arlinda Cantero Dorsa é doutora em Língua Portuguesa (PUC/SP); professora do Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Desenvolvimento Local, da UCDB. Associada efetiva do Instituto Histórico e Geográfico de MS.

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