Da relevância de (pesquisar e) ensinar “velharias”
Sou “marcusiano” em certos assuntos, mas francamente otimista em relação a outros. Por exemplo, acredito que os estudos sobre a sociabilidade cortesã e as práticas letradas, produzidas durante o chamado “Brasil Colônia” (entre os séculos 16 e 18), perderam parte de seu prestígio nos últimos tempos. Em contrapartida, entre as décadas de 1990 e 2010, alguns mestres (como João Adolfo Hansen, na USP, e Alcir Pécora, na Unicamp) formaram quadros de inquestionável repertório e competência, no País – parte deles de quem me tornei colega e amigo, desde o ingresso como professor de Cultura e Literatura Brasileira, no curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, em 2014.
Embora alguns professores e pesquisadores dedicados ao estudo das velharias estejam um tanto isolados Brasil afora, a maioria deles persiste a investigar tais matérias e (tentam) chamar atenção dos alunos para essas áreas de conhecimento, relacionando-as a outras disciplinas tão ou mais abrangentes, fundadas nos studia humanitatis (retórica, poesia, filosofia moral, história).
Por incapacidade de adivinhar o que se passa nas mentes e corações alheios, deponho por minha conta e risco. Diariamente, atribuo-me a responsabilidade de ampliar os conteúdos e aprimorar a elocução, de modo a tornar as aulas sobre “Colônia” mais atraentes, tendo em vista captar novos alunos para as pesquisas sobre retórica, poética, tratados de cortesia etc. Por isso, exerço contínua e rigorosa autocobrança; pelo mesmo motivo, apresento edições variadas da mesma obra; por tal razão, costumo sugerir aos alunos de (pós) graduação que estudem os artefatos letrados e, em paralelo, a história, a racionalidade, a concepção de mundo que os cerca.
Talvez soe ingênuo, mas sinto e penso que não posso demonstrar desânimo por nenhum autor, obra, matéria ou período, ainda que esteja cansado (antes e durante a aula, a banca, o evento etc.). Posicionar-me desse modo tem chamado a atenção de alunos visivelmente interessados na literatura em geral. Parte deles passa a ver maior sentido em ler e anotar esses tratados, cartas, sermões, relatos e poemas – especialmente os seres desconfiados de que as convenções nos precedem: são superiores ao mega-indivíduo de nossa era.
Cada época traz modos complexos de se pensar e produzir arte. Ingenuidade, a meu ver, é ignorar que nossas relações pessoais, vestimentas e formas de comunicação estão permeadas pelas convenções, a despeito de vivenciarmos a cultura instantânea, rarefeita e a-histórica, veiculada nas plataformas e multimeios digitais. Decerto, nós, que pesquisamos as matérias “antigas”, interessados em documentos e bens culturais que circularam entre 1500 e o final do século 18, enfrentamos grandes obstáculos, por conta da concepção utilitária, especificadora, reguladora e fiscalizadora, disseminada por órgãos de fomento. Compreende-se, inclusive, que uma parcela dos docentes esteja resignada a essas e outras métricas, sem lhes contrapor maior resistência.
Porém, igualmente triste é testemunhar diálogos ofensivos de colegas (detentores de outros repertórios e saberes) que alegam não ver sentido em nos determos naqueles tempos, lugares e práticas. Ora, deixarmo-nos contagiar por esse pensamento redutor, calcado no discurso derrotista, no pragmatismo e na ideologia do “vencedor”, implica desistência de nós mesmos e das áreas de atuação – que deveriam ser motivo de nossa dignidade, orgulho e pujança.
Desprezar a premissa de que, em alguma medida, também cabe a nós mantermos esses (e outros) estudos vivos, é admitir que a concepção reducionista e clientelista da educação venceu. Quem não está disposto a enfrentar alguns concursos de ingresso, com vistas a se afiliar às instituições de ensino e pesquisa; quem confunde frustração pessoal com a suposta falência da área (inclusive aquela com que experimenta maior afinidade) precisa fazer um autoexame e mirar mais longe, de preferência para além de sua rua, bairro ou cidade.
Sabemos que a categoria docente não costuma ser das mais unidas e coesas. Por sinal, talvez seja um dos ingredientes que mais estejam em falta. Nesses tempos de egolatria, narcisismo e incapacidade de escuta, professores e pesquisadores ganhariam mais se investissem suas energias, repertórios e competências a estabelecer diálogo (horizontal) com outros colegas, compensando a desagregação da classe profissional com o estabelecimento de redes de estudos sobre retórica, poética e outras artes.
Vossa mercê “mire veja”: precisamos nos unir – coisa que nem sempre nossos antecessores lograram fazer. O que não faz muito sentido é maldizermos as frentes em que atuamos (e nas quais pretendemos intervir) por não vermos maior horizonte ou perspectiva local e imediata. Para além da afinidade pessoal, estudar velharias é um ótimo pretexto com vistas a estabelecer relações entre passado e presente. No caso luso-brasileiro, isso é evidente. Até quando precisaremos explicar a importância de investigar as práticas de outros tempos? Desde quando essa área de estudo passou a sugerir que os interessados nela seriam conservadores ou reacionários?
Na medida do possível, reforcemos as balizas, esforçando-nos por contagiar as novas gerações com o nosso interesse por essas matérias. Articulemos grupos de pesquisas, conectando docentes situados em várias instituições do País (e fora dele). Ou estamos obrigados a “formar” alunos hiperespecialistas, que desprezam a relevância das letras e sociabilidades anteriores à era em que nasceram?
Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP