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De volta para o futuro: o ensino híbrido sempre existiu, nosso problema é outro

Peter Schulz (*) | 19/07/2021 08:21

Na metade do ano dois da pandemia, agita-se o movimento de volta para o futuro no ensino superior. Às vésperas do fim da maioria das medidas de restrição devidas à Covid-19 no Reino Unido, apesar da volta de um preocupante aumento no número diário de infecções por lá, uma matéria publicada no The Guardian, traz a manchete de que a “covid-19 tem sido um grande catalisador” de mudanças para as universidades no mundo pós-pandêmico. O mote é o anúncio recente de que a Universidade de Manchester manterá permanente as aulas no formato remoto e que outras instituições tendem a seguir esse caminho. O bom jornalismo do portal inglês aprofunda as opiniões dos concordantes e dos discordantes, muitas das quais, ambos os lados, são vistas por aqui.

Os líderes de muitas universidades na terra da rainha declaram que o mundo digital “aumenta a experiência dos estudantes”. Os investimentos futuros serão em propriedades digitais e não mais em instalações físicas e juram que o custo disso é alto, enquanto os céticos alfinetam dizendo que essa mudança é, ao contrário, justamente para diminuir os custos. Outros se entusiasmam, dizendo que a situação em que vivemos é o tal grande catalisador de boas e grandes mudanças proporcionadas pelas realidades virtual e aumentada oferecidas pela tecnologia. Sorriem também para as vastas possibilidades no mercado internacional de estudantes, já que, “em vez de ter que viajar por meio mundo até uma universidade no Reino Unido, eles [os estudantes] poderão estudar de seus países natais, uma opção mais barata e acessível para a maioria dos jovens.” Por outro lado, muitos consideram isso um engodo. De fato, parece uma burla desse novo e querido anseio das universidades, a internacionalização -, pois o diploma da universidade X pode ser obtido remotamente, mas isso não tem nada a ver com a experiência real da convivência presencial em outro lugar. E levar essa experiência de volta ao país de origem. As autoridades universitárias alardearão o aumento dos indicadores de internacionalização ao mesmo tempo que diminuem o valor e o número das bolsas de estudo, reservando a experiência real para uma elite ainda menor.

Os docentes e administradores discordantes advertem que é preciso pensar um pouco mais: devagar com o andor. A percepção é de que os estudantes estão ansiosos pela volta do “cara-a-cara” na sua formação. Movimentos estudantis pedem reembolso, pois se sentem logrados pagando o mesmo pelo ensino remoto, lembrando que no Reino Unido o ensino superior público também é pago. Na matéria do The Guardian, um dos entrevistados lembra que obviamente seminários e laboratórios são melhores em grupos presenciais pequenos, mas mesmo as grandes aulas presenciais são melhores, pois percebe-se se a aula está sendo boa ou não pela reação corporal dos estudantes, permitindo ajustes. De um modo geral, aulas expositivas em grandes turmas são vistas - lá e cá – como pouco efetivas, que dirá quando são remotas. E uma citação direta de um dos entrevistados:

“Enquanto você disser que as aulas são online, isso perpetua a noção de que toda a experiência do estudante é online. Quando estudantes dizem que querem aulas [presenciais], não que dizer que querem aulas, eles querem ir aos cafés com os colegas após as aulas e conversar sobre elas. Eles querem se engajar. Portanto, o que você realmente deve fazer é se perguntar: como o seu campus deve ser usado para estimular o engajamento?”

O entrevistado acrescenta que baniu a expressão “ensino híbrido”, pois considera-a totalmente inútil para discutir a situação presente. Concordo com o colega além-mar, pois, como anunciado no título acima, ensino híbrido já existia há muito tempo. Vejamos: o “híbrido” se refere a essa mistura entre presencia e virtual. Nos idos dos anos 1980 o ensino híbrido era possibilitado aos estudantes, pelo menos no curso de física na Unicamp. Não era obrigatório assistir as aulas, pelo menos para boa parte dos professores. Você poderia, se quisesse, estudar na biblioteca – equipamento da época para o ensino remoto – e só apresentar-se nas avaliações. E tirar dúvidas com os professores fora da sala de aula, que não se ofendiam pelas faltas. Muitos colegas se formaram com esse “ensino híbrido”.

Eu ia na maioria das aulas, mesmo porque não eram muitas, mas ficava imaginando os colegas de alguns outros cursos que ficavam de manhã e de tarde, se segunda a sexta, sentados olhando os professores de olhos abertos ou fechados. E a biblioteca era tão interativa quanto as plataformas digitais de hoje, embora não oferecessem tanta diversidade e variedade de fontes. Aqui dou a mão à palmatoria, hoje podemos dar acesso, via essa “biblioteca aumentada” a muito mais informações e materiais aos estudantes. No entanto, com o passar do tempo e o avanço do gerencialismo nas universidades o controle de frequência passou a ser cada vez mais valorizado, na minha opinião tendo mais a ver exatamente com controle do que ensino. E assim, enquanto debatemos que o número de aulas precisa diminuir em favor de outras práticas de ensino, colocamos novamente as aulas na centralidade da experiência universitária. Com a possibilidade das aulas remotas “catalizadoras” de um “brilhante” futuro corremos o risco de um retrocesso mediado pela tecnologia.

O problema não é o “híbrido” que já existia, mas sim o de escamotear a questão do que de fato será considerado a experiência universitária no futuro. Argumentos econômicos já surgem onde não é necessário, como a junção de turmas nas aulas online. Para que dar a mesma aula duas ou três vezes se é possível juntar numa turma só? Porque nenhuma aula é igual, as construções de significado são diferentes em momentos e turmas diferentes e o docente pode melhorar a mesma aula a cada vez que é dada e, se necessário, retomar as mudanças para a primeira turma na semana seguinte.

Ensino híbrido, portanto, não é coisa recente em seu conceito, e a aprendizagem remota, graças à tecnologia, povoa o imaginário ainda há mais tempo. Vejamos o trabalho do ilustrador Arthur Radebaugh (1906-1974), “engenheiro da imaginação” nos anos 1950 e da década seguinte, que influenciou a visão de progresso e de futuro de mais de uma geração nos EUA. Suas tiras de quadrinhos eram publicadas aos domingos e destaco a que ilustra a coluna: “educação aperta botão”. O quadrinho se refere provavelmente a todos os níveis de ensino, mas a legenda exalta a possibilidade de que as “escolas de amanhã” terão mais alunos e menos professores. O ensino será por meio de aulas e avaliações remotas. Nota-se que essa visão é pré-internet: apenas a professora é remota, os alunos são presenciais socializando com máquinas. A internet de hoje, imprevisível na época, possibilita agora que todos estejam remotos.

Na discussão do que será nosso futuro é importante não se deixar seduzir apenas pelas possibilidades do enxoval tecnológico e sim lembrar o que significa a universidade e que presencial e virtual não são a mesma coisa. Caso contrário, preservaremos os anéis no lugar dos dedos. A coluna é cheia de opiniões, que não refletem necessariamente a opinião da universidade onde estou, mas precisamos é de evidências para discutir o futuro e as que temos são ainda poucas e enviesadas pela emergência que nos aflige.

(*) Peter Schulz  é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.

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