Democracia é, literalmente, educação
A frase que empresta o título a este artigo foi proferida por Anísio Teixeira, grande visionário de políticas educacionais e um dos fundadores da Universidade de Brasília, em discurso realizado na Assembleia Constituinte da Bahia, em 1947, na cidade de Salvador.
Servem-nos, a frase e seu autor, como inspiração para registrar dois importantes fatos ocorridos no final desse mês de agosto de 2023, no Ministério da Educação (MEC): a instituição da Comissão Nacional de Educação Bilíngue de Surdos (CNEBS), com a posse de seus membros no dia 22, e a posse dos novos membros da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), no último dia 29. (Ver imagens)
Ambas as Comissões têm caráter consultivo e de assessoramento do Ministério da Educação, respectivamente no campo da educação bilíngue de surdos e da educação escolar indígena. Ressalto essas duas comissões, por alcançarem a interface entre a Linguística e a Educação, uma vez que abrangem, nos dois casos, grupos linguísticos particulares, que têm o português como segunda língua. Entretanto, é de se observar, ainda no âmbito do MEC, a constituição, também, da Comissão Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (CNEEPEI).
Esses fatos constituem um movimento mais amplo, por parte do Governo Federal, de retomada das instâncias de participação social na formulação, no acompanhamento e na avaliação das políticas públicas em todas as áreas – um aspecto da democracia completamente negligenciado pelo governo anterior.
Especificamente no contexto das discussões sobre inclusão e acessibilidade e das políticas afirmativas em geral, a efetiva participação social é relevante porque representa uma mudança de paradigma – nada trivial – que se traduz fortemente pelo lema “Nada sobre nós sem nós”, difundido, em muitos países, pelas organizações de pessoas com deficiência, mas que pode se expandir para outros grupos vulnerabilizados.
De fato, nas comissões supracitadas, além dos representantes das secretarias, coordenações e órgãos institucionalizados do poder público, há representantes de entidades da sociedade civil dedicadas a cada uma das temáticas e, sobretudo, representantes das comunidades a serem alcançadas pelas políticas públicas. Que essas comunidades disponham de instâncias legítimas a partir das quais podem, elas mesmas, manifestar suas demandas e a forma pela qual julgam mais adequado ser atendidas é uma questão de justiça social.
Tive a honra de participar da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI) na condição de representante da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), de 2010 a 2012, quando o Ministério da Educação institucionalizou esse órgão colegiado, com o acréscimo de representantes de organizações governamentais e indigenistas. Posso atestar o quanto o trabalho dessa Comissão tem sido fundamental para a garantia do direito dos povos indígenas à educação em suas línguas maternas, para a formação de professores indígenas nas licenciaturas interculturais e para a consequente revitalização das línguas ameaçadas de extinção (a que estão associadas outras políticas públicas no campo da cultura e do patrimônio imaterial).
Evidentemente, não se trata de que essas Comissões se sobreponham aos poderes constituídos no que concerne à aprovação, execução e reformulação das políticas. Trata-se, antes, de desenvolver mecanismos de escuta democrática, em que se colocam, em patamar de igualdade, posicionamentos, muitas vezes antagônicos, oriundos de diversos atores sociais. Trata-se, sobretudo, de promover o efetivo exercício da democracia em diferentes níveis.
O desenvolvimento de políticas públicas por meio da democracia participativa não é tarefa fácil. No mesmo discurso em que proferiu a frase que dá título a este artigo, Anísio Teixeira também prenunciava: “A democracia é o regime da mais difícil das educações”. Que essas instâncias de participação social se organizem no âmbito do Ministério da Educação nos traz esperança em relação ao futuro da democracia no país.
(*) Rozana Reigota Naves é professora e pesquisadora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) e tem doutorado em Linguística pela Universidade de Brasília.