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Descriminalização da maconha deve ser feita com regulação do setor

Por Roberto Tadao Magami Junior (*) | 06/03/2024 13:33

Nesta quarta-feira (6), será retomado no STF o julgamento sobre a descriminalização da maconha (constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas). E até o momento, o placar é de cinco votos favoráveis e apenas um contrário.

Dentre os argumentos favoráveis, definiu-se um critério para diferenciar traficantes e usuários: a posse de 25 a 60 gramas ou de seis plantas fêmeas.

Entretanto, a título de exemplo, não foi definida a quantidade de THC admissível nestas plantas, da mesma forma que a maioria dos EUA regulamentou para evitar surtos de psicose nos usuários — 10% de THC.

Esse é apenas um dos exemplos do porquê o tema deve ser disciplinado em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.708 para afastar qualquer entendimento de que é crime plantar, cultivar, colher, guardar, transportar, prescrever, ministrar e adquirir cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico, declarando a mora da Anvisa para regular o tema e conceder-lhe um prazo para tal desiderato.

O objeto desta reflexão não é apresentar uma retórica favorável ao uso recreativo, mas sim promover uma ponderação circunscrita à utilização da cannabis nos setores farmacêutico e têxtil, por intermédio de plantas que possuam níveis de THC até 0,2%, e, portanto, a abordagem é estritamente de cunho econômico, na medida em que este mercado até 2026 pode atingir o montante de US$ 61 bilhões.

A RDC nº 327/2019, em seu artigo 18, permite somente a importação do insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado e, portanto, proscreve o cultivo.

Contudo, em verdade, a restrição da Anvisa até hoje se mostra inócua e contraditória, pois há pacientes que obtiveram autorização judicial pelo Superior Tribunal de Justiça para cultivar até 354 pés de cannnabis por ano com o objetivo de extrair as propriedades medicinais da planta para uso terapêutico.

Esses salvo condutos não adentraram em questões também relevantes do ponto de vista técnico-científico, pois até o momento não houve discussão ainda sobre a correta extração do óleo para fins medicinais, com vistas a garantir um produto — insumo farmacêutico ativo ou produto final — que atenda às diretrizes sanitárias estabelecidas e contemple as exigências de ausência e/ou quantidades mínimas permitidas de defensivos agrícolas e metais pesados, tais como arsênio, ferro, mercúrio e cádmio, cuja ingestão a longo prazo pode causar outras doenças cerebrais degenerativas.

Mister ressaltar que até agora a Anvisa autorizou a importação, a partir de prescrição médica por meio de receita especial do tipo B, que tem cor azul, de 25 produtos.

Competência técnica da Anvisa - Salvo melhor juízo, e com todas as vênias, a Anvisa inclusive precisa definir se possui ou não competência técnica para discutir todo e qualquer tema relacionado à saúde pública ou se, de forma discricionária, somente para alguns produtos lhe interessa avocar a sua competência.

Segundo a própria Anvisa, entre julho de 2021 e junho de 2022 foram autorizadas 58.292 importações de medicamentos derivados de cannabis, ao passo que entre julho de 2022 e junho de 2023 foram 112.731 autorizações, todas com fundamento na RDC 660/2022, da Anvisa, mas infelizmente nestas hipóteses não há nenhuma rastreabilidade e, principalmente, a possibilidade de acompanhamento farmacoterapêutico, requisitos exigidos pela própria RDC 327/2019, da própria Anvisa.

A título de exemplo, relembremos atos editados pelo Congresso Nacional declarados inconstitucionais pelo STF, como por exemplo a Lei nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.

Para o STF, em razão do postulado da separação dos poderes, o Congresso Nacional não pode autorizar, de forma abstrata e genérica, a distribuição de droga. E ao permitir a distribuição de remédio sem controle prévio de viabilidade sanitária, omitiu-se no dever constitucional de tutelar a saúde da população, que não seria plenamente concretizado se o Estado deixasse de cumprir a obrigação de assegurar a qualidade de droga mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desengano, charlatanismo e efeito prejudicial.

Ainda nesta senda, rememoramos a declaração de inconstitucionalidade da Lei 13.454/2017, que autorizava a produção, venda e consumo, sob prescrição médica no modelo B2, dos remédios para emagrecer sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol.

O mesmo STF reconheceu ser de competência da Anvisa o controle sobre os medicamentos fabricados, vendidos e usados no País e, por conseguinte, qualquer lei que contrarie decisões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) viola o direito a saúde.

Logo, extrai-se que o tema em comento da mesma forma não compete ao Congresso Nacional, mas sim à Anvisa, por ser detentora de conhecimentos técnicos e de reconhecida deferência judicial na edição de seus atos de cunho estritamente técnico-científicos.

Regulação econômica - Não é demais relembrarmos que as Agências Reguladoras, incluindo a Anvisa, foram criadas pelo então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado Bresser Pereira entre 1995 e 1998, transmutando o Estado produtor para o Estado gerencial, que age como capacitador (enabler) da competitividade das empresas privadas e reconhece que há espaço para ação reguladora e discricionária das agências, já que não é possível nem desejável regulamentar tudo por intermédio de leis e decretos.

Impende mencionarmos ainda estudo da Casa Civil publicado em 2003, que reconhece o indispensável papel das agências reguladoras para o sucesso dos investimentos privados, tão essenciais para suprir o déficit de investimento em infraestrutura e tecnologia, e que contempla significativos custos irrecuperáveis (sunk costs), amortizados por um longo prazo de tempo, e conclui que o Executivo necessita garantir e fortalecer o papel das agências, autônomas e independentes, como reguladoras dos setores, aí incluída a indústria farmacêutica.

Alfim reconhece que a regulação econômica deve ser constantemente aperfeiçoada, tendo como meta a promoção da concorrência como mecanismo de organização da atividade econômica. E o que significa isso?

A resposta é simples: não cabe ao Legislativo definir critérios técnicos relacionados à importação de sementes de cannabis, e tampouco autorizar o cultivo e a comercialização dos produtos porquanto é indispensável um modelo de regulação de caráter dinâmico, para que se preserve a estabilidade dos setores regulados, e as decisões possuam cunho estritamente técnico de maneira que as mudanças em benefício da sociedade sejam implementadas dentro de parâmetros adequados e reconhecidos internacionalmente, observando as melhores práticas regulatórias internacionais.

A regulação deve ser realista para reconhecer e explorar as contradições entre os cânones jurídico-políticos herdados da tradição liberal e as demandas do capitalismo regulado; e a tensão entre o desejo de controlar a burocracia reguladora e a necessidade sistêmica de lhe delegar poder legislativo e, portanto, a questão que se põe para as sociedades complexas não é regular ou não regular, mas como, de forma a conciliar efetividade, planejamento e democracia.

Consolidando este posicionamento, a Lei nº 13.848/2019 em seus artigos 4º e 5º passou a exigir das agências reguladoras, tal qual a Anvisa, a devida adequação entre meios e fins, vedando a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público, indicando sempre os pressupostos de fato e de direito que determinarem suas decisões.

E nesta senda, se a própria Anvisa é quem define o que são drogas por intermédio da sua Portaria nº 344/98, complementando a norma penal em branco (Lei nº 11.343/2006), em razão da própria dinamicidade desse mercado ilegal, caberá a ela definir os critérios para o setor de cannabis nos setores têxtil e farmacêutico.

Entrementes, até o presente momento não o fez, mas de maneira contraditória permite a importação de medicamentos à base de cannabis, que possuem alto custo e não autoriza ao setor privado a possibilidade de cultivar a planta no território nacional para finalidades de produção de medicamentos em larga escala e ampliar o acesso dos pacientes por meio da redução de custos, além de inovar o setor têxtil.

Trata-se de uma medida reconhecida por Daron Acemoglu (Professor do MIT) e James A. Robinson (Universidade de Chicago — Harris School of public policy), em “Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza”, praticada por instituições políticas e econômicas de cunho extrativista que agem assim na América Latina e na África e prejudicam o desenvolvimento nacional ao restringir o mercado a poucos, levando os países à estagnação e à pobreza, como no caso em concreto é nítido o favorecimento às indústrias farmacêuticas internacionais.

E essa oposição, segundo Daron Acemoglu (Professor do MIT) e James A. Robinson tem uma explicação bem coerente, “pois o crescimento econômico e a mudança tecnológica são acompanhados pela destruição criativa, em que há a substituição do velho pelo novo. Novos setores atraem recursos dos antigos.

Novas empresas tiram negócios das já estabelecidas. Novas tecnologias tornam as habilidades e máquinas existentes obsoletas. O processo de crescimento econômico e as instituições inclusivas nas quais ele está ancorado criam perdedores, assim como vencedores, na arena política e no mercado econômico. O medo da destruição criativa é comum na raiz da oposição a instituições econômicas e políticas inclusivas”.

Daron Acemoglu e James A. Robinson afirmam que as instituições políticas e econômicas extrativistas coíbem instituições econômicas inclusivas com medo da destruição criativa para manter o poder de uma pequena parcela da população.

Cannabis para fins medicinais - E por essa razão, em observância ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, no caso em comento deve ser ampliando o mercado de cannabis para fins medicinais e têxteis no país, em prol do desenvolvimento econômico existente em países como EUA, Europa, Coreia do Sul, dentre outros, coibindo que as instituições extrativistas mantenham o status quo de uma pequena parcela detentora de poderes político e econômico em detrimento da maioria da população, e salvo melhor juízo, assim age a Anvisa no caso em comento.

O artigo 2º da Lei nº 11.343/2006 proíbe em todo o território nacional as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, mas ressalva as hipóteses de autorização legal ou regulamentar.

Em seu parágrafo único, o artigo 2º da Lei de Drogas afirma que pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

Ora, a Constituição, em seu artigo 170, assevera que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados vários princípios, dentre eles a livre iniciativa e a livre concorrência.

Dando concretude aos ditames constitucionais foi editada a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), que afirma em seu artigo 2º, §2º, “interpretar-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”.

De essencial importância trazermos à balha o artigo 2º, §6º, que considera atos públicos de liberação, dentre outros, a autorização por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica.

Ainda sobre a Lei da Liberdade Econômica, seu artigo 3º, caput e seu inciso VI, que afirmam ser direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, o que nos parece ser o caso, uma vez que Canadá, EUA, Portugal, Espanha, Argentina, Uruguai, dentre outros países permitem o cultivo e a exploração econômica.

E a omissão da Anvisa impede que o Brasil adentre nesse mercado e assuma um papel de protagonismo em termos de competitividade internacional, geração de empregos e pagamento de tributos, que é tão essencial para a manutenção do Estado e a adequada prestação de serviços públicos.

Não é somente pela ação que se criam nichos de mercado, mas também pela omissão, como parece ser o presente caso, e a Lei de Liberdade Econômica veda essa atitude que indevidamente cria uma reserva de mercado ao favorecer grupos econômicos internacionais que importam medicamentos à base de cannabis, prejudicando a concorrência nacional ao impedir a entrada de novos competidores nacionais neste mercado, além de impedir a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios.

Desta forma, deve o Poder Judiciário declarar a mora da Anvisa na regulação do tema e lhe conceder um prazo para esta finalidade, de forma que a economia nacional também avance neste setor tão rentável internacionalmente.

(*) Roberto Tadao Magami Junior é procurador autárquico, advogado, pós-graduado em Direito Público, mestre em Direito pela PUC-SP, pós-graduando em Arbitragem pela Faculdade de Direito Universidade de Lisboa e pós-graduando em Direito da Proteção de Dados pela Faculdade de Direito Universidade de Lisboa/Irish Computer Society.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

 

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