Do embranquecimento cultural ao genocídio
Hoje eu pretendia pensar na minha pesquisa, pretendia refletir sobre a intersecção entre a cultura negra e a pedagogia do teatro, sobre as belezas que tenho descoberto ao pesquisar as africanidades e as afro-brasilidades. Mas a barbárie distanciou meu curso das belezas de forma que não tenho alternativa senão falar do genocídio da população negra brasileira. É assim: nosso caminho é constantemente cortado pela brutalidade e nossos objetivos, desviados pelo horror e pelo medo.
Vamos falar sobre duas formas de genocídio às quais homens e mulheres são submetidos. Em justiça com o passado e com o presente, Abdias Nascimento – homem do teatro, das artes, das letras e das lutas – foi preciso em descrever e denunciar as tantas formas de assassinatos em massa que se efetivam sobre corpos negros. Hoje, no entanto, quero me deter nestas duas: a primeira é a ausência de representatividade negra positiva na literatura, na dramaturgia, no cinema e na teledramaturgia, a qual Abdias denomina como “embranquecimento cultural”. Ele aponta essa como estratégia do genocídio, por massacrar a subjetividade negra. A segunda é a morte do corpo físico, cuja banalização nos assombra desde os tumbeiros.
Lembro-me que, em 2016, o ator afro-americano Chris Rock foi apresentador da cerimônia do Oscar. Ao comentar a inexistência de artistas negras e negros entre as indicações à cobiçadíssima estatueta, Chris ironizou, dizendo algo como:
“Por que os negros só estão reclamando agora? Por que não reclamavam nas décadas de 1950, 1960? Porque tínhamos coisas reais sobre as quais protestar na época. Estávamos muito ocupados sendo estuprados e linchados para nos preocuparmos com quem ganhou o prêmio de melhor fotografia”.
Se concordamos que nossa atual realidade não é muito diferente daquela à qual o ator se refere, como podemos verificar em uma série de acontecimentos ao longo de 2020, falar sobre a ausência de modelos edificantes negros no âmbito da classe teatral, do cinema e da dramaturgia pode parecer uma queixa fútil, secundária, que só diz respeito às atrizes e aos atores negros, por subtrair-lhes oportunidades dignas de trabalho. Qual a importância disso diante do sangue negro derramado diariamente, não é?
Acredito, contudo, que haja uma estreita relação entre o genocídio da população negra e a falta de nossa representação positiva nas artes cênicas e na publicidade.
Para explicar essa relação, preciso me valer de Sankofa, o símbolo do povo Axante que traz a imagem de um pássaro que caminha para frente, porém com a cabeça voltada para trás. Essa imagem sintetiza o provérbio “nunca é tarde para voltar e pegar o que ficou para trás”. Em minha pesquisa de doutorado, relaciono esse símbolo com a retomada da cultura negra, um daqueles encantamentos sobre as quais falei no início. Neste momento, porém, invoco Sankofa para falar sobre as dores que fazem parte da nossa história. Eu juro que não queria que fosse assim, mas não posso nem quero me calar.
Assim, retornamos até a segunda metade do século XIX, período que antecedeu a abolição da escravização no Brasil, no qual começaram a ganhar espaço as chamadas teorias eugênicas e racialistas na sociedade brasileira. Tais teorias, construídas por intelectuais que transitavam entre as ciências biológicas e humanas, criavam “verdades e provas” para demonstrar a superioridade branca e o seu pretenso merecimento em ocupar postos de confiança na hierarquia social.
Com inspiração nas ideias de Cesare Lombroso, cruzavam-se dados antropométricos com características comportamentais, como uma hipotética relação entre o tamanho de crânio e a prática de ações criminosas, por exemplo. Dessa forma, justificava-se uma suposta tendência de pessoas negras ao crime. Para racialistas e eugenistas, o fenótipo associado aos homens negros indicava comportamentos ligados à violência, à indolência e ao vício. Para as mulheres negras, por sua vez, sua fisicalidade designava a promiscuidade e a lascívia. Para ambos, essas teorias apontavam acentuada força física aliada à baixa capacidade intelectual.
Com a abolição da escravização no Brasil, as autoridades governamentais da época preocuparam-se em eliminar da nova nação republicana que nascia os traços negroides da população e, com eles, os comportamentos que consideravam selvagens, incivilizados e indesejáveis. Aí está mais uma face do genocídio apontada por Abdias.
A importação de sangue europeu viria a “limpar” a sociedade brasileira por meio da miscigenação, na qual deveriam prevalecer os atributos físicos de ascendência europeia. Foram feitas estimativas de que, em um século, as características do povo negro desapareceriam do território nacional. Creio que somos, realmente, um povo muito forte pois, apesar de todas as tentativas, esgotou-se o prazo previsto, seguimos aqui e somos a maior parte da população brasileira.
A divulgação do discurso e das práticas eugenistas e racialistas influenciou a produção literária da época: enquanto personagens negras e negros eram corrompidos pela descrição feita por seus autores (que se tratavam majoritariamente de homens brancos de classes sociais abastadas), as mulheres brancas eram apresentadas por essas produções escritas como símbolos de delicadeza e pudor cristão. Homens brancos apareciam como bravos, heroicos, destemidos, bondosos e de caráter impecável. Mais tarde, esse mesmo discurso foi incorporado pela teledramaturgia.
As novelas, que são, indubitavelmente, formadoras de opinião e, quiçá, orientadoras das subjetividades brasileiras, até o momento, pouco fizeram pela desconstrução da imagem subalternizada associada ao povo negro no imaginário brasileiro. Ao contrário, ao reproduzi-las reiteradamente, mais contribuíram para a consolidação de tal preconceito.
Ademais, a comprovação pseudocientífica relacionada à intenção de vincular raça e criminalidade – pela qual o médico legista, psiquiatra e antropólogo Nina Rodrigues é um dos responsáveis, em nosso país – impacta até hoje os imaginários sociais, inclusive dos agentes públicos e privados de segurança. Vale lembrar que Lombroso foi estudado até poucos anos nas academias de polícia em todo o Brasil.
Aí está a ponte entre as duas reivindicações negras que apontei no início do texto: primeiro, a ausência de representatividade negra positiva, não apenas na literatura, na dramaturgia e na teledramaturgia, mas em todos os âmbitos da sociedade (inclusive nos livros didáticos).
Essa escassez contribui para a pretensão de superioridade hierárquica de pessoas brancas sobre pessoas negras e, também, para a baixa estima de negros e negras, ao cercear-lhes a perspectiva de verem-se e entenderem-se para além dos estereótipos. É o que Abdias Nascimento definiria como colonização mental. Em segundo lugar, aliada ao primeiro protesto, segue-se a urgente contestação pela manutenção do nosso direito à vida, o apelo traduzido em hashtags como #paremdenosmatar e #vidasnegrasimportam.
Em síntese, a reprodução sistemática de tais estereótipos naturaliza a percepção de mulheres negras como promíscuas e motiva os contínuos ataques sexuais e a violência doméstica que reincidem sobre seus corpos desde a desventura colonial. A veiculação desse clichê sobre os homens negros enfatiza um caráter violento e desonesto, que tem como consequência os “equívocos” policiais que confundem furadeiras, guarda-chuvas e celulares com armas letais, tendo como sequela a truculência da abordagem de homens como João Alberto, que vimos sucumbir diante de câmeras de aparelhos celulares, no chão de um supermercado, sem poder respirar.
Como artista negra, me sinto honrada por descender de mulheres como Josephine Backer, Carolina Maria de Jesus, Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta, Conceição Evaristo, Vera Lopes, Celina Alcântara e Cristiane Sobral e de homens como Abdias Nascimento, Aimé Cesaire, Grande Otelo, Oliveira Silveira, Sirmar Antunes e Jessé Oliveira, para citar apenas alguns nomes.
Assim como essas pessoas, também tenho feito do teatro instrumento de denúncia do racismo. Nos palcos e nas ruas, meus espetáculos abordam as injustiças sofridas pelas cidadãs e pelos cidadãos negros brasileiros, mas também trazem à cena suas histórias, sua estética, sua musicalidade, sua corporeidade, sua religiosidade e sua forma de ver, viver e sentir o mundo.
Nas salas de aula, meu trabalho tem se direcionado à cultura negra não apenas como temática a ser abordada, mas como forma de interpelar a pedagogia e de construir o aprendizado teatral. Além disso, do mesmo modo sistemático e cotidiano como somos atacadas(os), tenho me esforçado em oferecer rotineiramente às(aos) estudantes referências de homens e mulheres negras que são produtoras de arte, intelectuais renomadas e que ocupam posições de poder e de tomada de decisões.
É pouco, eu tenho plena consciência disso, mas essa parece ser a contribuição que posso oferecer à luta antirracista. Não é mais do que uma pequena gota de água no meio de um mar de merda. Mas eu acredito na minha gotinha.
Como encerramento, gostaria de citar aqui uma frase da filósofa militante Angela Davis, que tem inspirado e conduzido minhas ações pedagógicas e artísticas desde a primeira vez que a escutei:
“Não estou mais aceitando as coisas que não posso mudar. Estou mudando as coisas que não posso aceitar”.
(*) Dedy Ricardo (Edilaine Ricardo Machado) é atriz, mestra e doutoranda em Educação