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Donald Trump e o futuro da democracia

Por Rossana Reis (*) | 12/11/2016 09:50

No dia 9 de novembro de 2016 acordamos com a notícia de que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Embora as pesquisas de opinião apontassem essa possibilidade há algum tempo, a incredulidade diante do resultado das eleições presidenciais norte-americanas foi geral.

Considerando a importância dos Estados Unidos para a economia e para a política mundial, passado o impacto das primeiras horas, analistas de todas as partes buscam antecipar as mudanças que estão por vir e prever os impactos do fato consumado sobre o mundo.

Os críticos liberais preveem o fim do mundo tal como nós o conhecemos, caso o presidente eleito cumpra alguma das suas promessas de campanha, pautadas por uma combinação de xenofobia, nacionalismo e protecionismo e que, se levadas adiante, teriam o potencial de acirrar as tensões raciais que já dividem o país, aumentar o fosso das desigualdades sociais e tornar o mundo mais inseguro do que já é. Some-se a isso o perfil outsider do presidente eleito, o que traz ainda um adicional de imprevisibilidade a um quadro já bastante sombrio.

Os críticos de inclinação mais realista se apoiam na solidez das instituições políticas norte-americanas para desacreditar a hipótese do fim do mundo. Para estes, da mesma forma que a primeira-ministra Teresa May, apesar da vitória nas urnas, está tendo dificuldades em implementar a agenda do Brexit na Grã-Bretanha, Trump também vai encontrar nos outros poderes obstáculos consideráveis a quaisquer tentativas de alterar radicalmente os rumos das políticas norte-americanas, sobretudo se chocar-se com os interesses da burocracia de Washington, dos grandes conglomerados econômicos e dos grupos políticos mais tradicionais. Em geral, são esses mesmos críticos que nos recordam de Ronald Reagan e George W. Bush para nos lembrar de que “não há nada de novo sob o sol”.

Finalmente, existe o grupo dos céticos, que acreditam que as bravatas de campanha foram um artifício para ganhar a eleição, e que a agenda do presidente tende a ser mais conservadora de que os discursos do candidato.

Em geral, são esses os mesmos que apontam para as remarcáveis semelhanças entre democratas e republicanos, especialmente no campo da política externa. Segundo esse raciocínio, não há nenhum motivo para imaginar que a presidente Hillary Clinton seria muito diferente do presidente recém-eleito, em termos, por exemplo, da relação com a América Latina ou na negociação de acordos comerciais.

Cada uma dessas críticas mobiliza argumentos contundentes. O candidato Trump foi mesmo espantoso, as instituições norte-americanas são realmente sólidas e sobreviveram a muitas crises; e de fato, aparentemente, as pessoas dizem qualquer coisa para ganhar eleições. Suspeito, no entanto, que nada disso seja suficiente para nos ajudar a entender o que vem por aí. Até o momento, diante da incerteza do futuro, entender a vitória de Trump parece ser o caminho mais produtivo para entender os desafios que se apresentam.

Aparentemente, a candidatura de Donald Trump foi mais capaz de compreender e se conectar à vontade dos eleitores norte-americanos do que a candidatura de Hillary Clinton. Digo aparentemente por duas razões: primeiro, porque o candidato Trump perdeu no voto popular e ganhou no colégio eleitoral. Fosse uma eleição direta, os resultados seriam outros.

Segundo, porque se comparamos o desempenho de Trump com o candidato republicano derrotado nas últimas eleições presidenciais, veremos que os números não são muito diferentes, aliás Mitt Romney teve mais votos em 2012 (60.933.504) do que Donald Trump em 2016 (59.639.552).

Evidentemente, é preciso uma análise qualitativa desses votos para entender o que essas duas cifras representam. Nada garante que o grupo de eleitores republicanos de 2012 e de 2016 seja formado pelas mesmas pessoas. Além disso, talvez mais importante do que os votos republicanos, foi a queda na votação dos democratas. Mais de 69 milhões de norte-americanos votaram em Barack Obama em 2008, contra 65.915.705 em 2012, e apenas 59.861.516 compareceram às urnas em 2016 para votar em Hillary Clinton. Finalmente, dentre os cerca de 231 milhões de cidadãos aptos a votar, cerca de 100 milhões não compareceram às urnas.

Esses dados sugerem que, mais uma vez, a engenharia institucional teve um peso igual, se não superior, ao da “vontade popular” nas eleições norte-americanas. Além disso, o número de eleitores que se absteve foi talvez mais importante do que os que compareceram às urnas, para explicar o resultado das eleições. Assim, tão importante como o “voto Trump” foi o fato de que algumas dezenas de milhões de cidadãos consideraram indiferente o resultado das eleições do último dia 8 de novembro.

Entender o “voto Trump” me parece menos problemático. Há anos os republicanos vêm subindo o tom das disputas políticas e apelando para argumentos nacionalistas, xenófobos, sexistas e conservadores que seduzem parte de uma população que se percebe empobrecida e negligenciada pelo establishment norte-americano. Talvez Trump não tenha sido o candidato desejado pela cúpula republicana, mas certamente ele é fruto da divisão de valores cada vez mais profunda dentro da sociedade, que se reflete em eleições presidenciais sempre altamente competitivas.

Já a abstenção, mais do que uma derrota democrata, é uma derrota para a democracia, é uma afirmação contundente de que em 2016, para uma parte significativa dos cidadãos norte-americanos, a escolha entre Donald Trump e Hillary Clinton foi considerada irrelevante.

A descrença no sistema e a indiferença de parte significativa da população, mesmo diante da retórica radical de Trump, nos levam a temer pelo futuro, não porque o próximo presidente norte-americano possa ser um desequilibrado, mas porque não existe instituição nem pragmatismo que possa defender a democracia da deserção do demos. Ainda é cedo para afirmar se estamos diante de uma tendência (que parece ecoar em outras democracias no mundo) ou de um soluço, mas certamente a eleição de Donald Trump é no mínimo um sinal de alerta para aqueles que se preocupam com o futuro da democracia.

(*) Rossana Reis é professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo)

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