É hora de falar sobre comida sustentável no Brasil?
“Porque as pessoas não podem pagar por alimentos orgânicos.” Foi assim que, há alguns anos, uma colega de trabalho tentou me convencer de que o debate da comida sustentável não era para o Brasil.
O ano era 2017. Naquela época a cesta básica custava R$ 431,66 contra os R$ 650,50 de 2021. De lá para cá, a inflação, o desemprego e os cortes em políticas públicas de segurança alimentar aumentaram a pobreza no Brasil, colocando-nos novamente no mapa da fome. A pandemia e a consequente crise econômica global agravam o cenário. Hoje, uma em cada duas pessoas no país tem dificuldade de colocar comida na mesa, muitas destas estão em situação de fome. E agora? Já é hora de falar sobre comida sustentável no Brasil?
Talvez você pense como minha colega, que não é hora. Apesar de não concordar, entendo o porquê de algumas pessoas pensarem desta forma. O mercado transmite a mensagem de que a sustentabilidade é um produto reservado às pessoas e nações que podem pagar por ele.
Na década de 80, o relatório “Nosso Futuro Comum” apresentou para o mundo o conceito moderno de sustentabilidade. Volte e leia novamente o título do relatório. Mais recentemente, com o lançamento da Agenda 2030 da ONU, a mensagem central continua sendo clara: “não deixar ninguém para trás”. Para que isso seja possível, as soluções para o futuro sustentável não podem ser tratadas como produto.
O conceito de sustentabilidade apresentado no relatório é fundamentado na satisfação das necessidades do hoje e no compromisso coletivo com as gerações futuras. Como nação, somos vítimas de uma mentira fundamental: a de que não temos o bastante para todos. Nesta lógica, precisamos produzir mais, a todo custo social e ecológico, para garantir a comida na mesa hoje. Pensar no amanhã é privilégio dos que podem pagar por orgânicos.
A questão que se põe é: como garantir o acesso de todos, no presente e no futuro, à comida que seja saudável para as pessoas e para o planeta?
Atualmente, consolida-se a ideia de que precisamos tomar uma atitude sobre o problema da produção e consumo de carne. As soluções começam a aparecer na forma de produtos: hambúrgueres vegetais, carnes de laboratório. Particularmente sou entusiasta de muitos deles. Como não acredito na epifania vegetariana em nível global, vejo nestes produtos um potencial de reduzir em grande medida o problema do sofrimento animal.
Mas o debate sobre substitutos da carne frequentemente deixa de lado um fator relevante: o acesso. Atualmente, meia dúzia de startups do Vale do Silício dominam a tecnologia de produção de carne cultivada. Essas empresas contam com investimentos dos maiores produtores de carne do mundo, dentre elas Cargill, Tyson e até a nossa velha conhecida JBS.
Os investimentos feitos por essas corporações ocorrem sob a condição de que a propriedade intelectual das patentes seja privada. Isso significa que todas as decisões fundamentais sobre a nossa comida serão tomadas por um punhado de pessoas com o objetivo principal de expandir o lucro de seus investidores. Não preciso contar o que acontece no final dessa história.
No terreno da comida, o acesso depende de reforma agrária com demarcação de terras e renda. São mudanças estruturantes, que levam tempo, mas que não são impossíveis. O Programa Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Guia Alimentar para a População Brasileira são provas vivas de que somos capazes de criar soluções públicas para a alimentação sustentável.
Se você está lendo este texto, provavelmente é uma das pessoas que tem a sua próxima refeição garantida. Por isso, sua capacidade de participar da construção do futuro que queremos também começa aí, na próxima refeição. Se puder, reduza o consumo de alimentos de origem animal; diversifique sua dieta com mais alimentos locais, sejam eles plantas, cogumelos, ou algas; valorize o trabalho de agricultores e agricultoras familiares.
Por fim, sua capacidade de participar de forma mais ativa da construção do futuro que queremos também mora no voto. Apoie representantes que defendam expressamente que a forma como produzimos e consumimos comida no nosso país precisa mudar; que não nos transformem em vítimas do engodo produtivista enquanto negociam nossas florestas e nossas vidas; que compreendam que um país rico é um país livre da fome.
(*) Michelle Jacob é professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).