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Ensaio sobre a nova cegueira

Tarcisio Eloy Pessoa de Barros (*) | 04/05/2020 12:46

José Saramago, escritor português, Nobel de Literatura em 1998, com estilo característico de escrever e uma capacidade única para o uso de metáforas e simbolismos para caracterizar as mazelas que acometem a sociedade, em seu livro Ensaio sobre a cegueira, publicado em 1995, descreve a situação ocorrida em uma comunidade após o aparecimento de uma infecção com transmissão rápida, que provoca cegueira nas pessoas.

Progressivamente, a maior parte da população é contaminada e o governo toma medidas semelhantes às que observamos hoje: fechamento de fronteiras, confinamento, racionamento e tantas outras que não se faz necessário descrevê-las, visto que estamos convivendo com as mesmas diuturnamente, como se estivéssemos nas páginas do livro.

Na obra, Saramago retratou de forma genérica vários tipos de pessoas que compõem uma sociedade, sendo os personagens denominados de forma impessoal, mostrando seu objetivo de comprovar que eles se constituem em uma amostra da coletividade, que progressivamente vai ficando cega a tudo que ocorre ao seu redor.

O não uso de nomes próprios para descrever as personagens acentua a impessoalidade do comportamento, ou seja, a culpa e a responsabilidade não são atribuídas a um indivíduo em particular, mas sim ao coletivo.

A mulher do médico, a rapariga de óculos, o velho da venda preta, a velha do primeiro andar, o rei da ala três e tantos outros personagens representam a sociedade como um todo.

Se Saramago estivesse descrevendo nosso momento atual, teria ficado surpreso com a quantidade de personagens e cenas que nasceram espontaneamente, chegando a superar a sua imensa capacidade criativa.

Solicito licença ao grande escritor para apresentar alguns personagens atuais que ele poderia ter descrito se estivesse relatando o período turbulento que vivemos: o sensacionalista, o médico que opina sobre qualquer assunto, o oportunista que vende a falsa cura, o agiota que quer aumentar seus lucros, o investidor que não quer perder seus dividendos, o comentarista que repete obviedades, o homem que vive na bolha. Personagens que, ainda que presentes no dia a dia normal da sociedade, na pandemia veem suas características ganharem contornos mais fortes e grotescos.

Na obra de Saramago, em geral, e no livro, em particular, há uma galeria de frases que poderiam ser utilizadas como se descrevessem nosso cotidiano.

“Se queres ser cego, sê-lo-ás”.

“É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”.

“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”.

“O medo cega… são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”.

“A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente”.

“Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão”.

Já foi dito e repetido que em épocas de crise aparece o que há de melhor e de pior no ser humano. E hoje temos a demonstração prática de que a referida afirmação é totalmente verdadeira.

Enquanto algumas pessoas e instituições, que têm olhos de ver, têm demonstrado louvável e elevado espírito de colaboração, o que chega a ser emocionante, tentando ajudar especialmente as camadas mais carentes de nossa população, outros, ainda cegos, se mostram indiferentes ao sofrimento de seu vizinho, como se vivessem em uma dimensão paralela que não será atingida pelo coronavírus ou como se não estivessem no mesmo barco. Se afundar, não haverá distinção entre mais ou menos abastados.

Podemos encontrar na obra de Saramago a representação metafórica ou explícita de praticamente todos os pecados descritos pela igreja católica, sejam eles mortais, capitais ou veniais, assim como podemos encontrá-los no momento atual que nossa sociedade vive, mas creio que o pior de todos seja o egoísmo, que vários setores e pessoas têm demonstrado.

A palavra mais importante que deveria nos nortear neste momento é solidariedade, independentemente de qualquer outra prioridade.

O momento é de união, gregos e troianos, cientistas e religiosos, ateus e agnósticos, verdes e vermelhos, federais e estaduais, todos trabalhando no mesmo sentido e na mesma direção para ultrapassarmos este momento difícil para nosso país e para o mundo como um todo, com o menor grau possível de danos, pondo à prova se o ser humano merece mesmo ter tido o privilégio de ser responsável pelo destino de um planeta.

(*) Tarcisio Eloy Pessoa de Barros é diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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