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Ética e interesse público em tempos de infodemia

Marco Schneider (*) | 14/09/2023 13:30

Nossa época é marcada por uma proliferação sem precedentes de desinformação, em termos de quantidade, variedade, customização, capilaridade, velocidade, escala e ubiquidade, ao ponto de terem sido cunhados e popularizados nos últimos anos termos como pós-verdade, fake-news e infodemia para designar fatores que se retroalimentam.

Pós-verdade designa uma situação na qual crenças pessoais têm mais peso na formação da opinião pública do que evidências ou argumentos racionais. Fake-news são informações falsas produzidas com aparência de notícias jornalísticas, em geral do tipo sensacionalista, e que circulam principalmente nas mídias digitais.

O termo também é empregado, por parte de quem se sente incomodado, para desqualificar notícias jornalísticas que incomodam. E infodemia é a desinformação em escala pandêmica e com efeitos infodêmicos, gerando caos cognitivo em parte substancial da opinião pública. E morte.

A infodemia que nos assola tem a marca ideológica da extrema direita e envolve um amplo conjunto de agentes, do inocente útil ao sociopata e ao neonazista, passando por oportunistas de diversos calibres, alguns deles ganhando muito dinheiro e poder com ela. Entre esses agentes, encontram-se proprietários, empresários e acionistas das grandes plataformas digitais de comunicação, que têm demonstrado, nas palavras da socióloga Shoshana Zuboff, uma “indiferença radical” em relação ao crescimento dos discursos de ódio, do neofascismo, do negacionismo científico, do revisionismo histórico.

Esse conjunto de agentes recusa qualquer modalidade de regulação, por democrática que seja, de suas atividades em nome da defesa da liberdade de expressão. Liberdade esta que certamente é um valor a ser defendido. Mas não é o único.

Sou professor de ética da informação e de ética jornalística. Uma das questões centrais da ética em geral é a eventual contradição entre valores considerados dignos de apreço, defesa e promoção.

Na ética da informação, especialmente na ética jornalística, a questão geral se particulariza na eventual contradição entre três compromissos: com a liberdade de expressão, com a objetividade e com o interesse público. São todos valores dignos de apreço, defesa e promoção. Com muita frequência, formam um trio virtuoso de valores complementares. É o caso do melhor jornalismo. O oposto disso é a propagação infodêmica de fake-news e de outras modalidades de desinformação.

Por dever de ofício, infelizmente nem sempre cumprido a contento, o jornalismo precisa atentar para que esses três princípios deontológicos da profissão não se choquem, não se anulem. Penso que essa orientação deontológica poderia servir de parâmetro para o debate em torno da regulação das plataformas digitais de comunicação.

A defesa da liberdade de expressão tornou-se um valor praticamente unânime em nossa sociedade. Felizmente é assim. O compromisso com a objetividade e com o interesse público, porém, nem sempre acompanha essa defesa. Pelo contrário, o que se tem visto com frequência alarmante é o uso da bandeira da liberdade de expressão como escudo ou salvo conduto para a disseminação de mentiras altamente prejudiciais ao interesse público.

Não há aqui espaço para um aprofundamento do debate em torno do que viria a ser a objetividade e o interesse público. Há certamente controvérsias. Quanto à questão da objetividade, porém, se é difícil ou mesmo impossível chegarmos a um acordo com base em evidências sobre a origem do universo ou o sentido da vida, é perfeitamente aferível a partir delas saber se a Terra é ou não plana; se a Coronavac inocula chips chineses ou nos protege da covid-19; se as urnas eletrônicas foram ou não fraudadas; se a Bélgica invadiu a Alemanha ou se a Alemanha invadiu a Bélgica na 2.a Guerra Mundial; se o Fluminense perdeu ou ganhou de 4×1 do Flamengo na final do Campeonato Carioca de 2023.

Quanto à questão do interesse público, a despeito da variedade de visões de mundo e de sutilezas conceituais, pode-se afirmar com segurança que a morte evitável de milhões de pessoas, como consequência da anticiência ou da ‘fake science’, não é e não pode ser de interesse público; a defesa da substituição do estado democrático de direito por governos que flertam com o fascismo não é e não pode ser de interesse público; o ocultamento ideológico da pobreza e da miséria de muitos sustentando a opulência de poucos não é e não pode ser de interesse público; a naturalização ou o mascaramento do racismo não é e não pode ser de interesse público; a destruição do meio ambiente, o extermínio de nações indígenas, a perseguição a minorias religiosas, mulheres, população LGBTQIA+ e o assassinato de crianças em escolas, principalmente meninas, não é e não pode ser de interesse público.

(*) Marco Schneider é pesquisador do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, professor da Universidade Federal Fluminense.

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