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Eu te dou casa e comida – livros, não!

Marisa Midori Deaecto (*) | 14/04/2021 07:52

As notícias diárias escancaram o estado de indigência e de luto a que a população brasileira se viu reduzida nesse último ano, em que as mortes por covid-19 não demoram a atingir 400 mil seres humanos e a taxa de desemprego é de 13,9%, ou seja, afeta perto de 14 milhões de cidadãos. A realidade se torna ainda mais dramática diante do cenário de fome, solidão, desamparo e violência, que expõe sobremaneira os grupos mais fragilizados a um estado de flagelo perpétuo, frente ao qual o poder público parece insensível. A crise econômica atual nos lança a todos em um abismo. E não há um corpo de resgate pronto a nos amparar.

Mas o que a questão dos livros tem a ver com tudo isso?

Nada. Ou quase.

A reforma tributária elaborada pelo ministro Paulo Guedes, com vistas a engordar o tesouro e driblar a crise, defende a taxação dos livros em 12%. Além de estar muito longe de servir como um remédio contra a crise, o projeto ataca um setor dinâmico da economia nacional, agravando ainda mais a onda de desemprego e a miséria. Diante desse fato, perguntamos: a quem interessa esse projeto?

O golpe ao livro imune foi denunciado nesta mesma folha, ano passado, quando o ministro da Economia encaminhou à câmara o tão alardeado projeto de reforma tributária. Ocorre que a taxação aos livros – seja por um imposto ou por uma contribuição –, como assinalado e reiteradas vezes lembrado durante esta semana, constitui um golpe contra a Constituição, a qual, convém lembrar, institui, no Art. 150: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [VI] – instituir impostos sobre: d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”. Cumpre, ainda, assinalar que, em 2004, a Lei nº 10.865 (inciso VI do art. 28) tornou as vendas de livros realizadas por gráficas, comerciantes atacadistas e varejistas isentas das alíquotas do PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). A proposta de Guedes consiste justamente na criação de uma alíquota única, a Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS), que viria substituir o PIS e a Cofins. A nova proposta derruba a isenção aos livros.

O projeto se apoia sobre a seguinte premissa: os livros são consumidos apenas pelas classes ricas. Sem dúvida, um argumento frágil, que desconsidera as pesquisas enfeixadas no programa Retratos da Leitura no Brasil, capitaneado pelo Instituto Pró-Livro, que desde 2001 vem trazendo subsídios para o conhecimento e ações mais efetivas das políticas públicas em favor da universalização dos leitores. Ao contrário do que estima o ministro, a penetração da leitura não distingue classes sociais. Aliás, nesta última edição do Censo (2019), confirmou-se uma tendência já observada desde as primeiras pesquisas: a maior penetração da leitura ocorre entre as classes C e D. Temos aqui um exemplo flagrante da importância de se investir seriamente em pesquisas que conduzam o governo a estabelecer metas condizentes com as reais necessidades da população. Tarefa tanto mais digna do que a torção de dados colhidos sem método, com o fim de manipular a opinião.

O que não raro se converte em um tiro no pé. A ampla cobertura da imprensa, a que se soma a mobilização da sociedade em prol do livro imune – como o movimento #defendaolivro –, constituem exemplos eloquentes de que não estamos a tratar de uma mercadoria banal, menos ainda, de um artigo de luxo.

Síndrome de Robin Hood?

Passemos em revista um lugar-comum: o consumo é universal. Logo, os impostos que incidem sobre o consumo atingem todos os setores da sociedade. E, fato já bastante conhecido, esses tributos têm impacto maior sobre a renda das classes menos favorecidas. Se a finalidade do projeto de reforma tributária é promover a justiça social, em uma versão inspirada em Robin Hood, então, bastava aumentar as alíquotas do imposto de renda, ou criar taxas especiais para as grandes fortunas, ou ainda impor porcentuais menos generosos ao imposto sobre heranças e doações.

Se comparadas com o sistema tributário praticado nos países desenvolvidos, ou mesmo entre nossos vizinhos, as alíquotas brasileiras são sempre as mais baixas. Portanto, senhor ministro, não seja tímido. É preciso atacar o problema na raiz, como fazem agora os “Milionários Patriotas” norte-americanos, que exigem a adoção de impostos sobre as grandes fortunas para tirar os EUA da crise. Não desestabilize um setor econômico que, embora muito acanhado – quando se o compara à potência editorial que representam esses mesmos países ricos que teimam em taxar seus milionários –, mobiliza e emprega milhares de trabalhadores, entre autores, gráficos, livreiros e todos os profissionais recrutados para os serviços editoriais.

Cumpre ressaltar que a imunidade aos livros não constitui, como se costuma dizer, uma jabuticaba, fruto típico do País. Em pesquisa recentemente publicada pela revista Exame, dos 134 países recenseados pela International Publishers Association, 53 (40%) não cobram o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) para os livros, enquanto 49 (37%) cobram taxas reduzidas. É sintomático que a isenção total de tributos seja aplicada em toda a América Latina, ou seja, nos países onde as políticas governamentais para o estímulo à leitura buscavam (e buscam) a superação de um atraso secular em relação, por exemplo, a diferentes partes da Europa. Apenas o Chile constitui uma exceção entre nossos vizinhos. Mas é bom lembrar que ainda ontem, naquele país, os jovens saíram às ruas e promoveram uma verdadeira guerra social em defesa do ensino gratuito.

Não se pode, outrossim, ignorar alguns princípios que regem o mercado, por exemplo, o tratamento excepcional reservado a alguns produtos. Como sustenta a International Publishers Association, “o livro não é uma commodity como qualquer outra: é um ativo estratégico para a economia criativa, que facilita a mobilidade social assim como o crescimento pessoal e traz a médio prazo benefícios sociais, culturais e econômicos para a sociedade”. É possível que esses benefícios econômicos estejam mais longe de ser alcançados hoje do que há cinco anos, mas isso acontece justamente porque não há uma ação conjunta entre o Ministério da Educação e a Secretaria de Cultura visando ao desenvolvimento do setor livreiro, em particular, e da economia da cultura, de modo mais abrangente. Para o gestor público, os benefícios sociais e culturais vão de par com os ganhos financeiros. Aliás, é por esse motivo que os investimentos no bem-estar social não podem ser interpretados, por um ardil tecnicista, como gastos públicos.

Talvez seja este o ponto central de toda a discussão – que a grande mídia ignorou. Como temos afirmado, os jornais já cuidaram de estampar informações de vária sorte que nos permitem esgarçar a tese frágil segundo a qual o povo não compra livros. O mercado editorial brasileiro se desenvolveu o suficiente para se tornar amplo e eclético, atraindo todas as classes de consumo, do leitor de best sellers ao público universitário. É claro que alguns setores têm periclitado mais do que outros, como apontamos, noutra ocasião, com respeito às obras técnicas e científicas – em que pese o descaso público e notório para com a produção científica no País. Mas há, aqui, uma outra questão, talvez, mais delicada: um bom gestor não pode raciocinar de forma mesquinha quando se trata de economia de consumo. O povo compra tudo e muito, nos tempos das vacas gordas. Lembremos que a era Lula apostou, com sucesso, nesta premissa, com o objetivo de alavancar o PIB. E o setor editorial prosperou naquela onda de crescimento econômico.

Logo, se o problema da taxação aos livros não aumenta as reservas do tesouro, da mesma forma que não contribui para o desenvolvimento do mercado, o que incomoda tanto o ministro Paulo Guedes?

Nem casa, nem comida: a lógica do gestor-patrão

A lógica que preside o discurso do governo Bolsonaro não está muito longe do velho jargão: “Te dou casa, comida e roupa lavada”. Algumas versões mais borbotoantes arrematavam a promessa de uma vida segura com o altivo “três milhões por mês”. Mas os tempos são bicudos, e não há garantia nem de casa, nem de comida; o dinheiro é escasso; e o básico já não é tão básico assim.

Por trás de um discurso aparentemente cavalheiresco, não por acaso reativado nos últimos tempos, sustenta-se uma sociedade machista e autoritária. As campanhas que conduziram ao impeachment da primeira presidenta brasileira, Dilma Rousseff, foram eivadas de falas e atos misóginos, em que a desqualificação da mulher independente e lutadora cedeu espaço para uma figura ideal feminina associada à disciplina, à obediência e ao servilismo – modelo seguido de forma impecável pelas duas últimas primeiras-damas. Mas essa subordinação apenas reproduz, na esfera familiar, um sistema mais amplo que pretende delimitar o espaço de ação e de representação não apenas das mulheres, mas de todos os segmentos considerados inferiores na sociedade. O disciplinamento das classes populares passa, logicamente, pelo aprendizado dos lugares que lhes são facultados a circular e, também, por seus hábitos de consumo. Casa e comida, sim. Livros e artigos de cultura, não. É esse o segredo da distinção, como bem nos ensinou Pierre Bourdieu, em seu estudo sobre os costumes das classe trabalhadoras na França[2].

Mas ocorre que as regras de distinção social respondem apenas por uma fração do problema. Se, de um lado, elas se destinam a minar a autoestima do povo e lhe tirar qualquer esperança de ascensão social – “pai lavrador, filho doutor”–, de outro, elas legitimam uma lógica não menos perversa: a do Estado mínimo. Da mesma forma que o macho se ocupa dos itens mais triviais de sobrevivência – pois, afinal, os “milhões” ficam na fatura do riso que o ridículo da situação provoca – ao Estado não cabe senão garantir as regras do jogo do mercado. Aliás, um jogo de cartas marcadas. A mais elementar cartilha sobre teoria marxista reconhece que o mínimo necessário para a sobrevivência do trabalhador conforma a parte mais ínfima do valor de sua força de trabalho. O resto se transforma em mais-valia. Quando o ministro da Economia sustenta que o povo não consome livros, ele não se apoia na observação dos fatos, mas em uma crença, já bastante arcaica, de que ao povo só resta o direito aos itens básicos de sobrevivência e reprodução. É bem verdade que no estado atual das coisas o governo não garante nem a casa, nem a comida. E os equipamentos de cultura? Estão todos relegados ao ostracismo ou, o que é pior, à força destruidora das seitas fundamentalistas. Não espanta, nesse sentido, a apologia às armas e à violência em detrimento da ciência e da cultura.

Aos mecanismos de distinção que acachapam o povo e garantem seu estado de subserviência permanente em um sistema desigual e exploratório, um último elemento só pode ser compreendido historicamente. E, certamente, na chave psicanalítica. Mas vamos nos deter ao nosso campo de conhecimento.

O discurso sustentado pelo presidente e por seus asseclas é passadista. Ele se apoia na ideia de um inimigo comum: o comunismo. Donde o apoio ao porte de armas, e as tentativas frequentes de golpe denunciadas pela imprensa. Notemos que o ataque aos livros segue na mesma linha de desqualificação de personalidades importantes de nossa história, a exemplo de Paulo Freire, cujo método se destinava a ensinar e politizar o povo; mas também de desmonte das universidades, da ciência e da cultura no sentido mais amplo do termo. Por mais antieconômica que se apresente a taxação aos livros, nada impede o ministro da Economia, em sua visão pouco dialética da sociedade, de associar o objeto e seus leitores a um tempo inglório, no qual os intelectuais, portanto, os escritores, enchiam as editoras e as livrarias de material subversivo. Como bem observou Roberto Schwarz, após o golpe de 1964, “a produção cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer”[3].

Pelo menos, até 1968. É nesse ranço passadista e equivocado que diferentes atores do governo Bolsonaro se apegam.

Finalmente, é preciso reconhecer que o neoliberalismo praticado pelo ministro Guedes se tornou altamente predatório para o mercado. Foi por esse motivo que a defesa ao livro imune logrou reunir diferentes setores do mercado editorial, de empresários a trabalhadores e leitores.

Porém, contra o ímpeto vingativo e retrógrado que rege as ações do governo é preciso mais, muito mais! A luta pelo livro imune deve se converter em uma ação concreta e coordenada em prol da universalização da leitura e do acesso amplo e irrestrito ao livro. A garantia da imunidade é uma luta contra o retrocesso. Outras lutas estão por vir, na medida em que o mercado se transforma, especialmente no que toca ao comércio varejista e ao sistema de distribuição. No momento em que os franceses celebram os 40 anos da Lei Lang, ou lei do preço único fixado na capa, e a Suíça implementa este sistema no país, não é hora de pensar em uma saída para uma existência mais harmoniosa entre livrarias e o e-commerce?

A luta pela acesso universal ao livro está apenas começando.


(*) Marisa Midori Deaecto é professora livre-docente em História do Livro do Depto. de Jornalismo e Editoração da ECA-USP

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