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Graciliano em domínio público

Por Alexandre Simões Pilati (*) | 28/01/2024 09:00

Desde 1º de janeiro de 2024, a obra de Graciliano Ramos está em domínio público, conforme a legislação brasileira. Na prática, isso significa que está liberada, decorridos 70 anos da morte do autor, a sua publicação, adaptação e difusão, sem que isso acarrete necessariamente a remuneração dos herdeiros, detentores dos direitos da obra.

O fato gerou grande repercussão midiática, fornecendo pauta para reportagens e debates na imprensa, seja pela sua dimensão jurídica, seja pela sua dimensão literária. Além do apelo comercial do acontecimento, o alcance da repercussão nacional e internacional da obra de Graciliano Ramos e seu valor literário inquestionável, são elementos sempre presentes no que se publicou a esse respeito desde o início do ano.

Para que se tenha uma ideia da amplitude do mercado das obras do autor alagoano, registre-se o fato de que a Editora Record, que deteve os direitos de publicação da obra por 48 anos, vendeu mais de 4,5 milhões de exemplares, sendo cerca de 2 milhões apenas do clássico Vidas secas.

Indubitavelmente, trata-se de um grande fenômeno de mercado, cujo movimento é impulsionado pela adoção frequente das obras de Graciliano por escolas e exames de vestibular. É de olho nesse quinhão que muitas editoras irão se mobilizar para reeditar livros do autor. E daí vem boa parte da energia que movimentou a imprensa nos últimos dias.

A família de Graciliano Ramos afirma que mantém o contrato com a Record até 2029, o que garante o pagamento de direitos autorais e pressupõe a manutenção do projeto de edição cuidadosa das obras, sob a supervisão dos herdeiros. Uma das grandes preocupações da entrada em domínio público do conjunto da obra do autor de São Bernardo, segundo os familiares, relaciona-se com a manutenção da sua integridade e o respeito à vontade do criador.

É algo que está no cerne da polêmica envolvendo a publicação do inédito “Os filhos da Coruja”, poema fabular escrito sob o pseudônimo de J. Calixto. Para a família, o texto, até então inédito, não deveria ser publicado, pois Graciliano sempre o considerara uma experiência menor. Para a Editora, trata-se de uma oportunidade de dar ao público infantil uma outra faceta do clássico escritor para adultos. Eis aí uma nuance do debate que já começa a encaminhar a questão para a dimensão da literariedade da obra de Graciliano.

O autor de Angústia é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes da prosa em língua portuguesa. Seu lugar em nosso sistema literário está garantido ao lado de nomes como Machado de Assis e Guimarães Rosa, autores centrais da nossa experiência de interpretação da realidade via ficção. Graciliano é uma espécie de ponte entre esses dois autores, apresentando-se, por um lado, como um consequente herdeiro do realismo intensivo de Machado de Assis (embora expresso por meios muito distintos).

Por outro, o “velho Graça” pode ser tomado como um balizador seguro do regionalismo universalista, que será radicalizado por Guimarães Rosa (que também trabalhará com mecanismos literários muito distintos). Ramos é, assim, um elo que assegura continuidade e diversidade à dinâmica social e literariamente orgânica do nosso sistema cultural.

Levando um pouco mais longe esse argumento, verifique-se a importância de Graciliano Ramos para a literatura brasileira nas pontes que sua obra estabelece entre polos organizadores de nossa cultura. Em primeiro lugar, o autor é uma ponte entre o Modernismo do primeiro momento e a literatura subsequente, que enriqueceria nossas letras com uma pesquisa ampla sobre as pluralidades que compõem a sociedade brasileira, com foco especial na expressão da vida daqueles que são os explorados pelo sistema capitalista periférico.

Desse modo, a obra de Graciliano, mais ou menos como a de Drummond, erige-se como autoconsciência do Modernismo e do processo modernizador do Brasil. Decorre daí, que sua obra é ponte entre o rural e o urbano e entre o atraso e o moderno. Tais polos seriam algo do essencial de nossa experiência histórica nos anos em que o autor produziu a parte mais significativa de seus escritos: Caetés, Angústia, Infância, São Bernardo, Vidas Secas e Memória do Cárcere.

Para dar conta de uma tarefa desse tamanho, era fundamental encontrar um estilo que estivesse à altura da verdade essencial a se expor ficcionalmente. O desenvolvimento de uma linguagem própria, dura, econômica, dolorida, para falar de questões densas cujo âmago é, na maioria das vezes, a pesquisa das tensões entre o núcleo do ser humano e o processo social que o constitui é, sem dúvida, uma altíssima realização da nossa língua literária.

Na raiz desse estilo está a concepção de literatura abraçada por Graciliano Ramos em sua trajetória literária, a qual se poderia resumir, grosso modo, como crítica da vida a partir da fidelidade aos fatos sociais que são submetidos à ficção, cujas leis determinam cada escolha de forma e de conteúdo.

Por essas e por outras razões, Graciliano é um clássico e sua obra, um patrimônio do povo brasileiro. Dessa forma, espera-se que, para além das questões relativas ao mercado e à rentabilidade que sua obra poderá trazer a editoras, a disponibilização de seus textos em domínio público contribua para uma democratização do acesso a elas, para uma consistente e sistemática revisitação crítica dos trabalhos, que suscitem novas percepções e conclusões que sublinhem sua importância universal e sua atualidade nacional.

(*) Alexandre Simões Pilati é professor associado de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, doutor em Literatura pela UnB.

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