Há futuro sem progresso? E progresso sem futuro?
Sobram experiências de tragédias ambientais resultantes de empreitadas em nome do progresso. Nem é preciso ir longe, o aquecimento global, a poluição do ar, do solo, as queimadas, o desmatamento, a própria pandemia da sars-cov-2 e da covid-19 e outros desequilíbrios ambientais influenciados por ação do ser humano têm impactado não apenas a qualidade da vida humana, mas de todo o meio ambiente e sua biodiversidade, colocando nosso futuro – e o presente – em risco.
Ainda assim, há quem advogue exclusivamente em nome do progresso, jogando a sustentabilidade para a antítese polarizada de qualquer avanço civilizatório, econômico e tecnológico. Mas desenvolvimento e sustentabilidade são ou podem ser dicotomias, antíteses e caminhos opostos? É possível algum futuro sem progresso? E qualquer progresso sem futuro?
Tecnologia e sustentabilidade
Na publicação Por uma TI mais verde, de Martin Jayo e Rafael Valente, vemos como a produção massiva de computadores pessoais e demais equipamentos da Tecnologia da Informação (TI) tem resultado em mais lixo eletrônico e maior emissão de CO2. Como apontam, “o volume de CO2 emitido anualmente como resultado da produção e uso de equipamentos de TI, que era de 300 milhões de toneladas em 2002, passou para 900 milhões em 2007 e deverá chegar a 1,4 bilhão de toneladas em 2020 – um crescimento de 370% em 18 anos”.
No entanto, Jayo e Valente também lembram que “apesar de emitir grande quantidade de CO2, [a tecnologia] pode ajudar outras indústrias a deixarem de emitir quantidades ainda maiores”. Não à toa, o prognóstico do GeSI previa para 2020 até 1,4 bilhão de toneladas de CO2 emitido, porém 7,8 bilhões de toneladas de CO2 “poupados” – um saldo resultante do uso da tecnologia como aliada em outros processos e setores.
Como exemplo, publicações mais recentes do GeSI apontam práticas como a do CarbonChain, na qual é utilizada Inteligência Artificial (IA) para rastrear e monitorar a emissão de dióxido de carbono (CO2) da indústria de commodities – esta responsável por cerca de 50% das emissões mundiais de CO2 no mundo. Assim, como podemos organizar tal caminho para congregar sustentabilidade e desenvolvimento sem fazer de tal progresso – visto por alguns como algo etapista – a antítese da existência de um futuro?
Assimilação e responsabilidade
Por um lado, cabe um desenvolvimento que propicie avanços tecnológicos que otimizem cadeias de recursos, preservem a biodiversidade e promovam o equilíbrio sustentável do meio ambiente; resultando inclusive em produtos mais eficientes – no que diz respeito à produção e consumo -, reduzindo a demanda por recursos na medida em que se otimiza sua técnica nas etapas de extração ou mesmo de transformação de matérias-primas.
Por outro, cabe uma sustentabilidade que, além de promover o equilíbrio do meio ambiente e sua biodiversidade, estabeleça a disponibilidade de recursos naturais, uma vez que estes passam a ser extraídos e utilizados com maior responsabilidade social e ambiental – otimizando o potencial das atividades econômicas mobilizadas para o próprio desenvolvimento.
Assim, a “conservação e aproveitamento racional da natureza podem e devem andar juntos” como aponta Ignacy Sachs, em Caminhos para o desenvolvimento sustentável, arranjando um duplo imperativo ético com “a solidariedade sincrônica com a geração atual e a solidariedade diacrônica com as gerações futuras”, na medida em que se aproximam novas dimensões ao desenvolvimento, além da perspectiva exclusivamente econômica.
Em suma, se mal articulados ou secundarizados, desenvolvimento e sustentabilidade podem até se tornar dicotomias na medida em que uma irresponsável exploração do meio ambiente deve desequilibrar a biodiversidade e resultar até mesmo em escassez de recursos e colapso econômico e ambiental. No entanto, se ambas projetadas em unidade rumo ao desenvolvimento sustentável, seu potencial viabiliza não apenas possibilidade de menor desgaste entre demanda e meio ambiente, mas também pela projeção de uma ação positivamente reparadora à biodiversidade, uma vez que tal desenvolvimento deve estar a serviço de um projeto sustentável; encarando a humanidade como parte do meio ambiente e relacionada à biodiversidade – propiciando a própria sustentabilidade do desenvolvimento e o desenvolvimento das práticas sustentáveis como princípios.
Crítica e desafio
Porém, não é possível observar a íntegra do desafio civilizatório de preservação e de defesa da biodiversidade e do meio ambiente apenas pela dimensão produtivista – ou até rentista no que diz respeito à especulação – de exploração econômica de mercado, mesmo que esta seja determinante às estruturas materiais da sociedade. Pois, ainda que a otimização de recursos, a mobilização de forças produtivas e o argumento econômico atraiam setores antes abertamente adversários da preservação do meio ambiente, é preciso aprofundar também o debate sobre qual modelo de desenvolvimento é possível se constituir a partir de uma escala global tão desigual.
Isto é, a condição de “desenvolvido” só existe para um grupo seleto de países enquanto houver outros países em condição de “subdesenvolvimento”. Não distante desta reflexão, Sachs aponta que “a História nos pregou uma peça cruel. O desenvolvimento sustentável é, evidentemente, incompatível com o jogo sem restrições das forças do mercado. Os mercados são por demais míopes para transcender os curtos prazos [como também aponta Deepak Nayyar] e cegos, para quaisquer considerações que não sejam lucros e a eficiência smithiana de alocação de recursos”.
Assim, não basta assegurar um arranjo passivo de sustentabilidade por um suposto desenvolvimento já em curso e aos marcos de indomáveis forças dos mercados, mas mobilizar esforços por um projeto de desenvolvimento sustentável que viabilize técnicas e tecnologias que estejam a serviço da preservação da biodiversidade e do meio ambiente como princípio – incluindo a vida humana, seus consumos e habitats. Além disso, considerando aspectos como equidade, empoderamento e sustentabilidade, e não tão somente a produtividade e demandas do mercado versus a oferta de recursos naturais.
Neste sentido, é necessário investir na interdisciplinaridade do debate ambiental, como reforça Sachs, “na qual cientistas naturais e sociais trabalhem juntos (…) para o uso e aproveitamento dos recursos da natureza, respeitando a sua diversidade”, inclusive no fortalecimento de políticas públicas e estratégias intersetoriais. Mais do que isso, é preciso envolver as populações locais nesse processo de discussão de preservação da biodiversidade e na formulação de alternativas, estimulando estas “a incorporar a preocupação com a conservação da biodiversidade aos seus próprios interesses, como um componente de estratégia de desenvolvimento”.
Até porque, não é possível que a promessa de um Estado de bem-estar social e um mantra de progresso se transforme, na realidade, em um Estado de mal-estar ambiental; ou que amenize tal exploração apenas em nome de uma produtividade desenfreada de um modelo econômico desgastado.
Acima de tudo, o compromisso humanístico com a sustentabilidade diz respeito à existência da vida e da biodiversidade em suas mais diversas formas, incluindo valores e dimensões para muito além de somente econômicos na centralidade do debate. Trata-se de um desafio civilizatório e de defesa da vida – de um futuro que não seja qualquer futuro e de um progresso muito além de apenas algum progresso.
(*) Ergon Cugler é pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.