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Há perigo na esquina: reflexões sobre deficiência e políticas públicas

Raul de Paiva Santos (*) | 09/12/2020 08:11

Começo esse texto na tentativa de falar com todas e todos os leitores potenciais, principalmente, com pessoas que, como eu, vivem com uma deficiência, mas também com aqueles que não têm deficiência alguma: mães, pais, cuidadores, profissionais de saúde e apoiadores da causa. É um desafio escrever de modo claro e simples, de conseguir me comunicar com o máximo de pessoas possível, pois a escrita dentro das universidades é muito restrita, por vezes inacessível, de difícil entendimento para quem não faz parte da academia.

A minha própria capacidade de escrever e dialogar com pessoas formadas, professores e “doutores” vem do contato com os livros e ensinamentos, que foi possível pelo meu acesso à educação, a universidades públicas de qualidade, às disciplinas de pesquisa e professores de todos os tipos, lugares e formações. Esse privilégio de acesso é negado à maioria das pessoas com deficiência (PCDs), apesar de ser um direito garantido pela lei. É partindo dessa brecha que quero apontar, logo no início, que a trajetória de conquistas, direitos e políticas sociais direcionadas às PCDs tem sido positiva, mas muitas PCDs (individualmente ou em grupos, associações, coletivos e outros), dos movimentos sociais, mães, pais, estudiosos e pesquisadores têm alertado que “há perigo na esquina”.

Meu objetivo aqui é refletir sobre aspectos da política e de direitos da pessoa com deficiência, a partir da leitura, análise e interpretação pessoal de textos de políticas públicas PCD brasileiras e de ameaças e retrocessos atuais dessas políticas. Aqui vai um alerta: não pretendo discutir tudo sobre todas as políticas, seria inviável. Reconheço que minha experiência como PCD é apenas minha e as reflexões acerca dessas políticas também são baseadas em minha interpretação do material, a partir de meu lugar social enquanto PCD, ativista, pesquisador, homem, gay, latino, do interior, de classe trabalhadora. É importante deixar claro que as deficiências formam uma categoria que é múltipla, há diversos tipos de deficiências, assim como inúmeras e diferentes experiências sobre o viver com deficiências.

Para podermos atingir meu objetivo de comunicação, sugiro antes revisarmos de onde viemos, onde estamos, para só então depois refletirmos sobre onde podemos chegar. Em uma breve retrospectiva histórica brasileira, se inicia a partir da década de 1960 os agrupamentos ou “associações” de PCDs, não vinculados a instituições, com fins de debater, problematizar e se reconhecer sobre as dificuldades enfrentadas, inclusive no acesso à saúde, à educação e ao emprego. Na década de 1970, juntamente com outros grupos (negros, sem-terra, mulheres, trabalhadores/pessoas periféricas e diversos outros), o movimento político da deficiência começa a ganhar mais visibilidade, com a reorganização de sindicatos e de movimentos sociais após o período de ditadura militar. As pautas e mobilizações tinham como base a reivindicação pelo protagonismo das PCDs, em termos de vida independente, de autonomia de suas escolhas pessoais, de saúde e políticas.

A partir também desse protagonismo e de ações de diversas outras pessoas da população, profissionais de saúde coletiva/pública e representantes políticos, em 1986 ocorre a 8ª Conferência Nacional de Saúde, cujo relatório permitiu a elaboração do artigo 196 da Constituição da “Saúde”. A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, a saúde pública brasileira ganha novos rumos e ocorre a criação do Sistema Único de SaúdeSUS. Com esse protagonismo político, a partir da década de 1990, nos primeiros anos após a criação do SUS, se inicia a publicação de políticas direcionadas às PCDs.

Se destacam como marcos legais sobre a deficiência: a publicação, na década de 1990 – em 1993 –, da Lei Orgânica da Assistência Social, com a criação do Benefício de Prestação Continuada. Já nos anos 2000, houve a publicação da Lei 10.098 (2000), que dispõe sobre a promoção da acessibilidade à PCD nos distintos ambientes sociais públicos, a publicação da Portaria nº 1.060 (2002) que institui a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, da Lei 10.436 (2002), que trata do reconhecimento no território brasileiro da LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais. Houve em 2008 a adoção da perspectiva da educação inclusiva no Brasil, o estabelecimento da Rede de Cuidados às Pessoas com Deficiência no SUS (2012), a criação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (2014) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015), que defende a remoção de barreiras ao acesso à educação, o aprimoramento dos sistemas educacionais e a plena inclusão de PCDs.

Sobre acessibilidade e deficiência é importante mencionar sobre o capacitismo, termo que a antropóloga e pesquisadora PCD Anahi Guedes de Mello aponta como relacionado à capacidade de ser e fazer, que é negada às PCDs nas diversas esferas da vida social. É o tipo de preconceito direcionado às PCDs, que estabelece hierarquias de poder, opressões e permeia as relações entre PCD e pessoa sem deficiência, produzindo barreiras ao acesso à saúde, segregação e exclusão social. Essas barreiras são acentuadas às PCDs negras, pobres, LGBT, que vivem em cidades distantes dos grandes centros médicos, por exemplo. Diante das dificuldades e capacitismo vivenciados em sociedade, nos ambientes e instituições de saúde e educação, as PCDs têm de resistir. Trago à discussão o pesquisador da antropologia social Pedro Lopes, que em sua pesquisa relaciona a categoria da deficiência para além dos “aspectos negativos”, dizendo que a deficiência produz também “resistência, organização e articulação política”.

No Brasil, os direitos das PCDs foram conquistados com muita luta, suor, mobilizações, vivências, lágrimas e persistência de cada ativista/militante, mãe, pai de PCD que integravam/integram o movimento da deficiência. Mesmo com tanta lei, muitas PCDs e familiares encontravam (e encontram) barreiras de acessibilidade, ao acessar serviços de saúde, educação e ambientes para participação social, recreação, lazer, de geração de renda e emprego etc. Recentemente, após o impeachment da presidenta Dilma em 2016, diversos militantes, ativistas e pesquisadores têm percebido, discutido e denunciado ameaças e ataques aos direitos humanos e às políticas sociais e de saúde que, de alguma forma, incluem as PCDs.

Em 2016, houve a aprovação da EC nº 95, considerada como uma ameaça à saúde pública brasileira, “pois transforma o ‘piso’ (limite mínimo) de despesas nas áreas de saúde e educação em ‘teto’ (limite máximo) por duas décadas”. Em setembro de 2020, ocorreu a publicação do Decreto presidencial nº 10.502, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial. Substituíram uma Política Nacional Inclusiva, sem ao menos tentar entender os problemas, analisar e modificar aspectos, investir nas potencialidades e no financiamento da capacitação de profissionais públicos de saúde e de educação inclusiva. Para a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência – AMPID, a política poderá produzir “efeitos nocivos de discriminação, de quebra de igualdade de oportunidades e de falta da acessibilidade às crianças, jovens e pessoas adultas com deficiência”.

Assim, o Decreto 10.502 é considerado um retrocesso por grande parte da comunidade/movimento de PCDs brasileiros, apesar de contar com a aprovação pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Conade, dado que não houve discussão ampla na sociedade e, principalmente, pelo potencial caráter segregacionista e excludente da política e por ir contra a perspectiva da educação inclusiva. Sobre o decreto, integrantes da comunidade científica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência, do Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) e do AcolheDown, alertam em nota conjunta que “a política, instituída pelo Decreto nº 10.502/2020, viola um direito humano da pessoa com deficiência assegurado constitucionalmente, quando viabiliza e legitima formatos educacionais na contramão das práticas inclusivas, corroborando para a segregação de tais sujeitos”.

Nos últimos anos tenho sentido muito medo e apreensão em relação ao rumo que as políticas sociais, de saúde e da educação estão tomando, porque tais políticas envolvem e possibilitam, em alguma medida, a vida e o existir de inúmeras PCDs. Pode ser que o Decreto 10.502 seja um prenúncio de que outros perigos se aproximam. Finalizo essa conversa com dois questionamentos: Como pensar, enquanto sociedade, sobre os impactos da exclusão e da segregação social, dos retrocessos de políticas educacionais e de saúde, na vida das PCDs e seus familiares/cuidadores? Como podemos nos organizar para lidar com os desafios impostos pelo subfinanciamento do SUS e da educação pública brasileira?

Como apelo, peço a todas as pessoas, de minorias ou não, que incluam as diversas deficiências e as PCDs nos lugares, apesar de sermos muitos em termos populacionais, não temos grande representatividade. Nos incluam nos debates, reflexões, mobilizações, práticas e discursos, pois a deficiência é uma categoria rica em diversidade, há PCDs negras, mulheres, periféricas, LGBTQIA+ e em outros diversos grupos, e podemos falar por nós, sobre nós e sobre saúde, política, inclusão, acessibilidade, educação e tudo mais. Em momentos de retrocesso e ameaça de retirada de direitos, precisamos de apoio e mobilização de todos da sociedade brasileira, com ou sem deficiência, para que nossas pautas e demandas específicas, nossas vozes, sejam ouvidas.

No mês de outubro de 2020 nota-se nas redes sociais um aumento de relatos e denúncias de familiares com dificuldades/problemas para matrícula de crianças PCDs no ensino público. Enquanto meus colegas/amigos e professores revisavam esse texto e eu procurava algum meio de comunicação na mídia para divulgá-lo, no dia 29 de outubro veio a conhecimento público o anúncio de redução de financiamento de 71% do Programa Nacional de Apoio à Saúde da Pessoa com Deficiência (Pronas/PCD), para o ano de 2020, em relação a 2019. Houve ainda redução de cerca de 15% do financiamento do Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon).

Não deu nem tempo de respirar e mobilizar contra o Decreto 10.502, que já surge essa redução de verbas por parte do governo federal, que certamente terá impactos em ações de saúde à população PCD, que já contava com investimentos insuficientes. São PCDs que poderão ficar sem acesso a ações de prevenção, promoção, reabilitação em saúde. Pessoas que dependem unicamente do SUS para acesso a profissionais e serviços de saúde, terapias e atendimentos diversos que permitem a manutenção de sua qualidade de vida, bem-estar físico e também social.

É perceptível que a saúde e a educação públicas da população com deficiência estão/serão negligenciadas na agenda política atual, apesar de serem essenciais à vida e ao existir das PCDs. Enquanto a deficiência aparenta ser importante à agenda política governamental, contraditoriamente, por detrás das cortinas nossa população recebe cada vez menos investimentos financeiros e é cada vez mais vulnerabilizada, excluída, segregada da sociedade. Despeço-me aqui mencionando o temor de tantos colegas PCDs, ativistas e militantes, conselheiros de saúde, pesquisadores, familiares, de que poderá ocorrer um “apagão de projetos que contemplem a área da deficiência”. Por fim, reforço aqui o chamado da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), que, em seu manifesto de repúdio ao Decreto nº 10.502, conclama “os agentes públicos e políticos, os movimentos sociais, as pessoas com deficiência e seus familiares e toda a sociedade a lutar em defesa da educação inclusiva no Brasil”.


(*) Raul de Paiva Santos é doutorando na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto  da USP e integrante do GT Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e do Coletivo Vidas Negras com Deficiência Importam.

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