Ianomâmis: réquiem para nós mesmos
No final dos anos 1980 ou começo dos anos 1990, não me lembro com precisão, escrevi um texto para a Unesco denominado Biodiversidade e Sociodiversidade: dois lados de uma mesma equação. O texto fez grande sucesso naquela organização basicamente porque defendia que a enorme importância “econômica” dada à biodiversidade deveria ser estendida, também, à sociodiversidade.
Infelizmente, apesar do sucesso da publicação, o termo sociodiversidade, bem como sua importância, foi desaparecendo das agendas internacionais (e nacionais), para minha mais profunda tristeza. Argumentava que, assim como a biodiversidade traz grande poder a um país, a sociodiversidade também o faz, se não mais ainda. Vou tentar me explicar, utilizando primeiro um viés utilitarista, como se faz com a biodiversidade, para, depois, aplicar um critério não materialista.
Como todos sabem, as populações tradicionais de um determinado bioma trazem consigo uma enciclopédia de conhecimentos sobre seu entorno, incluindo a mágica de como utilizá-lo como meio de sobrevivência sem comprometer a existência dele. Alguns chamariam isso de autossustentabilidade, desesperadamente procurada por nossa sociedade a partir do final do século 20. Não sei se a autossustentabilidade é possível em uma sociedade com a nossa escala demográfica e com tamanha expectativa de consumo. Mas certamente, se estratégias que mitiguem o impacto ambiental forem possíveis para nós, elas certamente terão que ser inspiradas nos povos originais (não entendo o porquê de “originários”) de cada grande bioma do nosso planeta, incluindo aí a Amazônia.
Ocorre que essas populações tradicionais estão sendo varridas do planeta, principalmente em nosso país, antes de terem suas bases de sustentação material e suas formas de manejo florestal estudadas em profundidade. Esse é o argumento utilitarista para defender a urgente manutenção dos povos originais na Terra.
Mas é possível argumentar por um outro viés, pelo menos não explicitamente utilitarista. A humanidade surgiu há cerca de 2,5 milhões de anos e até cerca de cinco mil anos atrás, vivemos em sociedades de pequena escala, cuja economia não visava ao lucro, sobretudo em pequenos bandos de caçadores-coletores e, mais tarde, em pequenas tribos com agricultura incipiente. Toda nossa psique foi formada nesse período e nesses contextos demográficos e econômicos. Portanto, se destruirmos os últimos povos originais do planeta, estará perdida, para sempre, a compreensão da nossa alma, dos nossos conflitos psicológicos e, por que não, psiquiátricos. Em poucas palavras, de nosso sofrimento enquanto espécie.
Cada uma dessas sociedades significa experimentos únicos em termos existenciais e elas podem ter encontrado soluções diversas para as dores da alma, que estamos falhando fragorosamente em encontrar (altas taxas de suicídios, altas taxas de depressão e ansiedade, altas taxas de consumo de remédios psiquiátricos, altas taxas de automutilação etc.). Portanto, “consultá-las” a respeito é o mínimo que podemos fazer. O problema é que perigas de quando descobrirmos isso, elas já estejam, irrecuperavelmente, varridas do planeta. A biodiversidade é o ouro que os biomas podem nos fornecer; a sociodiversidade, o diamante.
(*) Walter Neves é professor do Instituto de Biociências da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP.