Lições de epidemias passadas e o novo coronavírus
Há muitas razões para a (re)emergência de doenças infecciosas, são velhas doenças que ressurgem com outras características ou novos agentes infecciosos. Os microrganismos (vírus, bactérias, parasitas, fungos) se adaptam, adquirem novas habilidades biológicas e ecológicas, e respondem às ações humanas de maneira surpreendente. Degradação ambiental, aglomerações e deslocamentos populacionais, uso inapropriado de antibióticos, contato ocupacional, doméstico ou alimentar com animais silvestres, condições sanitárias precárias são fatores que potencializam a expressão de mudanças genéticas e amplificam a circulação de agentes infectantes. Há sempre novas ameaças!
Possivelmente foi o que aconteceu com Covid-19 devido ao vírus SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave coronavirus -2) pertencente ao mesmo grupo filogenético de coronavirus de morcegos. RNA vírus adaptou-se a outros mamíferos e ao organismo humano apresentando alta transmissibilidade. Em ambiente propício, espalhou-se a partir do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, Wuhan, China. Surgiu um “novo vírus” para o qual os humanos não têm imunidade. Temos uma pandemia de grandes proporções!
Experiências epidêmicas de grande magnitude foram muitas no Brasil. Temos registros de grandes epidemias a partir de documentos históricos sobre a varíola, peste bubônica, cólera, febre amarela, entre outras, no século XIX e até meados do século XX.
Sem dúvida, a gripe espanhola devido ao vírus Influenza A H1N1 em 1918 foi uma delas. No Brasil, as estatísticas não são precisas, mas um excesso de mortalidade foi registrado principalmente nas grandes cidades. Pânico, medo e morte tomaram conta da população. Os pobres ficaram totalmente desassistidos, sem acesso a serviços e a cuidados.
Para falar de casos mais recentes, a epidemia de doença meningocócica (duas ondas epidêmicas por meningococo sorogrupos C e A) da década de 70 (1973 a 1975) teve impacto notável, principalmente nas grandes cidades brasileiras, e pior, nas periferias urbanas. Em plena ditadura militar devido à censura, a epidemia foi enfrentada tardiamente, embora os técnicos da saúde já identificassem o aumento da incidência há meses. Doença bacteriana grave com alta mortalidade abarrotou os poucos hospitais que tinham isolamento nas cidades brasileiras.
As epidemias de dengue têm sido também um grande flagelo desde a reintrodução do vírus na década de 80, com sucessivas epidemias explosivas pelo país até a atualidade. Também a partir do início dos anos 80, a epidemia de HIV/aids se expandiu interiorizando-se e atingindo progressivamente grupos vulneráveis de condições socioeconômicas mais precárias.
Uma das epidemias mais dramáticas do Brasil recente foi a de Zika vírus (2015-2016) que se associou a quadros neurológicos graves em recém-nascidos, muito mais intensa entre a população pobre das cidades nordestinas.
O contexto da desigualdade e exclusão social explica a distribuição da maioria das doenças e das mortes no país, em epidemias passadas e recentes. Combater as desigualdades sociais no Brasil é chave para reduzir o impacto de qualquer crise sanitária/epidemiológica, de qualquer natureza.
Com relação a atual epidemia de Covid-19 no Brasil, o início foi marcado por atingir extratos da população com maior poder aquisitivo, que se expuseram ao vírus 2 em viagens internacionais, entretanto a expectativa é que siga o padrão de outras epidemias e se espalhe em populações vulneráveis socialmente, sem condições de aderir a medidas de prevenção da doença.
Assim, um dos maiores desafios na epidemia de Covid-19 no país, além de atrasar a subida da curva epidêmica para garantir a assistência aos pacientes graves e proteger profissionais de saúde é a diminuição das desigualdades no acesso à assistência hospitalar.
Ficam as lições de epidemias passadas a de se ampliar os investimentos na área da saúde pública: em pesquisa, vigilância, prevenção e assistência.
(*) Maria Rita Donalisio Cordeiro é professora titular do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia de Doenças Infecciosas, atuando principalmente nos seguintes temas: zoonoses, HIV, arboviroses, infecções respiratórias