Mais cortes na CT&I: você já defendeu a ciência hoje?
Em maio deste ano escrevi no Nexo Jornal como o subfinanciamento e o desmonte da Ciência, Tecnologia & Inovação limitavam o enfrentamento da pandemia da covid-19. Ainda assim, esperançamos e nos mobilizamos enquanto sociedade pela valorização da ciência para superarmos o cenário pandêmico – chegando a afirmar que a pandemia nos ensina que sem ciência não há futuro. Evidente que a comunidade científica ocupou a linha de frente junto aos profissionais da saúde em todo o País, porém, ainda assim, os cortes de bolsas seguem ocorrendo e diversas pesquisas estão sendo interrompidas. Será que realmente estamos aprendendo algo enquanto sociedade?
Desvalorização em números
Em todo o País, as universidades públicas brasileiras foram responsáveis por mais de 2.000 iniciativas contra os efeitos da pandemia da covid-19, resultando em milhões de vidas beneficiadas direta ou indiretamente pela vasta produção de equipamentos de proteção individual, respiradores, além de inovações tecnológicas, estudos e pesquisas que não se intimidaram em dar suporte à sociedade (mapeamento das iniciativas contra covid-19).
Apesar de todo empenho, os cortes para 2021 no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) chegam a 32%, se comparado a 2020. A perda maior é de R$ 4,8 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além de cortes em bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – como aponta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Destacando as bolsas do CNPq como exemplo, a redução de recursos chega a 64% no próximo ano. Na prática, o orçamento de 2021 prevê garantir apenas 4 meses de bolsas de pesquisa, pois 60,55% dos recursos dependeriam de eventual e incerta aprovação de créditos suplementares pelo Congresso. Atualmente, a Capes concede bolsas a 100 mil pesquisadores e o CNPq financia 80 mil bolsas de pesquisa (Agência Senado).
Em alguns Estados a realidade não é diferente. Segundo levantamento (Folha de S. Paulo), mais de um terço dos estudos e pesquisas publicados em todo o País sobre a covid-19 (38,7%) tiveram a participação das universidades públicas estaduais paulistas. Ainda assim, o governo do Estado tentou aprovar o trecho do PL 529/2020 que previa confiscar mais de um bilhão de reais do caixa das universidades públicas estaduais paulistas, com o argumento de promover “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas”.
Mesmo após mobilização da sociedade contra a tentativa de confisco, uma manobra no Orçamento de 2021 também proposta pelo governo do Estado – via PL 627/2020 – busca reduzir em 30% o financiamento da Fapesp e da pesquisa científica estadual, cortando R$ 454,7 milhões de projetos científicos, inclusive em andamento. Tal valor, no entanto, poderia pagar um ano inteiro de 54.465 pesquisas de iniciação científica (R$ 695,70 por mês) ou 18.547 bolsas anuais de mestres e doutores pesquisadores (R$ 2.043 por mês).
Sobre as bolsas, aliás, há quem insista em uma falsa ideia de que são um “privilégio” pago com dinheiro público. Pelo contrário, “um pesquisador universitário, por exemplo, recebe uma bolsa de R$ 400,00 mensais; valor que há anos não tem reajuste, que não conta com décimo terceiro, licença, seguro de vida, férias ou quaisquer direitos trabalhistas” (Nexo Jornal). Além, tal pesquisador não pode ter qualquer vínculo empregatício, sendo obrigado a se dedicar exclusivamente para a pesquisa em que é bolsista. Isto é, cortes e contingenciamentos significam, muitas vezes, a suspensão de toda e qualquer fonte de renda de um pesquisador – além da interrupção da pesquisa.
Porém, se as universidades estão sempre a postos e tais pesquisadores se dedicam exclusivamente para a produção científica brasileira, por que tal empenho não se reflete na construção de um orçamento que fortaleça e valorize a Pesquisa, Ciência, Tecnologia & Inovação?
Quem tem medo da ciência?
Ciência não se faz do dia para a noite, apenas para atender a um imediatismo de ocasião. Não é possível, também, interromper uma pesquisa por falta de financiamento e depois retomá-la no mesmo ponto. Com Ciência, Tecnologia & Inovação é necessário investimento programático, estratégico, ininterrupto, de qualidade e progressivo para que conhecimentos diversos estejam mobilizados e a postos para com a sociedade nos mais diversos cenários.
Não é possível também existir um suposto apoio de ocasião. Além, não basta apenas dizer apoiar a ciência, é preciso defender seu financiamento. Pois, ou se valoriza na prática a ciência como elemento central para a superação de crises e plataforma para construção de uma sociedade mais saudável, ou será apenas discurso.
No entanto, não faltaram figuras públicas que aproveitaram da onda em ascensão para fazer da ciência um slogan ao buscar legitimar decisões em meio à crise. Tão grave quanto polarizar com a cloroquina e desmobilizar uma eventual vacinação contra covid-19, por exemplo, é fazer uso oportunista da ciência para surfar na narrativa em alta e, ao mesmo tempo, usar o “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas” como desculpa para desmontar o financiamento público da ciência.
Até porque, ainda que se ignore todo potencial e transformação que o acesso a conhecimentos científicos traz para a sociedade, é impossível chamar ciência apenas de gasto e negar que investimentos em Ciência, Tecnologia & Inovação trazem ganhos futuros, impulsionando toda uma cadeia produtiva e agregando valor econômico ao País.
Porém, enquanto tentam uberizar a ciência brasileira, é preciso estar atento e forte enquanto sociedade, pois ainda que a comunidade científica entre em campo para estar na linha de frente, tal protagonismo não garante automaticamente um orçamento justo. Além, não se trata de uma batalha única, pois a disputa por uma sociedade que use a ciência como plataforma de promoção de justiça social deve ser travada diariamente por todos nós.
Assim, a provocação está em construir uma mobilização contínua de valorização da ciência, da divulgação e da popularização científica em nosso cotidiano, envolvendo organizações, associações e principalmente a sociedade como um todo na discussão dos rumos e desafios do que é público e comum da pólis. Até porque, se mesmo em meio à pandemia nos deparamos com ainda mais cortes e com tamanha desinformação negacionista circulando para legitimar tal desmonte, o que restará se não nos colocarmos diariamente no papel de defesa da ciência brasileira?
(*) Ergon Cugler é pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP