Memória digital: o que fica na rede quando partimos?
Vivemos momento de crescimento exponencial das informações que compartilhamos e deixamos salvas em meios digitais, tais como na memória de aparelhos eletrônicos e serviços de armazenamento em nuvem. Os dados pessoais guardados em redes sociais e plataformas digitais podem ser dotados de valor patrimonial, mas também possuir valor sentimental tanto para os donos dos perfis como terceiros que possuem vínculo com eles. Nesse cenário, o falecimento do usuário implica em questões sucessórias quanto ao destino de tais informações digitais, que podem versar sobre a memória afetiva e patrimônio do de cujus.
Em processo judicial proposto pelo pai e inventariante de uma jovem falecida em acidente de trânsito, o Tribunal de Justiça de São Paulo foi questionado sobre a possibilidade de expedição de alvará judicial para fornecimento de dados pela empresa que produziu o celular da jovem e lhe prestava serviços de armazenamento. No pedido elaborado pelo genitor, além de acesso a dados patrimonais, como os constantes em aplicativos de bancos utilizados pela então proprietária, havia interesse em acessar registros de família de valor sentimental como fotos, vídeos e mensagens, o que foi chamado pelo Tribunal de Justiça como “memória digital” da jovem.
Apesar do termo adotado pelo tribunal, não há definição legal do conceito no ordenamento jurídico brasileiro. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/18), não mencionam e nem dispõem sobre tal conceito. Em uma leitura restritiva, inclusive, a LGPD nem se aplicaria a pessoas falecidas, porquanto o conceito de titular de dados pessoais abrange apenas a pessoa natural a quem se referem as informações, sendo certo, conforme disciplina o Código Civil, que a existência da pessoa natural termina com a morte.
Não obstante, parte da doutrina defende que a omissão legislativa não deve servir de impedimento para que haja a proteção e disposição dessa memória (ou herança) digital após a morte. O Instituto Brasileiro de Direito das Famílias (IBDFAM) inclusive reconhece o instituto da memória digital, por meio de seu enunciado n° 40, que dispõe que “a herança digital pode integrar a sucessão do seu titular”.
Dito isso, deve-se, pois, dar especial atenção para a classificação dos dados deixados pelo falecido, que podem ser divididos em patrimoniais e existenciais. Os de conteúdo patrimonial são todos aqueles que possuem valor econômico mensurável como, por exemplo, aqueles inseridos em aplicativos de banco e em contas monetizadas de redes sociais. Já os de conteúdo existencial não possuem finalidades financeiras, tais como fotos no rolo de câmera do celular, as contas não-monetizadas de redes sociais, e-mails e aplicativos de conversas privadas.
Dessa divisão decorrem duas correntes doutrinárias: uma que entende ser transmissível a herança digital, independentemente de envolver conteúdo patrimonial ou existencial e (2) outra que sustenta a transmissibilidade apenas dos dados de conteúdo patrimonial, devendo os dados de natureza existencial ser tutelados à luz dos direitos da personalidade.
No precedente acima mencionado, vê-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo se alinhou à primeira corrente ao permitir ao pai acesso tanto as informações patrimoniais, quanto aos registros familiares armazenados no celular de sua filha, que possuem “imensurável valor sentimental”. A decisou enfatizou ainda que “a memória digital contida no aparelho (…) é de titularidade dos seus herdeiros”.
Tal entendimento ecoa o de outro julgado do mesmo tribunal. Dessa vez, era uma filha que buscava acesso aos dados armazenados em nuvem contratada por seu falecido pai. Novamente, apesar dos argumentos da provedora de serviços de nuvem no sentido de violação da intimidade e privacidade do de cujus e ausência de disposição em vida sobre o destino das informações, disse o tribunal paulista: “com efeito, os autos tratam do direito de acessibilidade à memória digital. (…) Pode dizer-se que é direito que decorre da interpretação sistemática do art. 1.788 do Cód. Civil”.
De acordo com Laura Schertel Mendes e Karina Fritz, a regra da transmissibilidade da herança digital não enfraquece os direitos de personalidade, mas reforça a autonomia privada dos usuários de redes sociais ao lhes assegurar o poder de decidir livremente quem pode ter acesso ao legado digital armazenado no mundo virtual.
Nessa toada, diferentes empresas fornecedoras de serviços digitais já possuem mecanismos para que usuários declarem a destinação de suas informações após a sua morte, inclusive com a possibilidade de nomear as pessoas que poderão ter acesso às informações armazenadas na conta ou a possibilidade de transformação de perfil em rede social, por exemplo, em página memorial ou simplesmente desativação da conta.
Vê-se, portanto, que tanto o Judiciário quanto as empresas tem se posicionando de modo a criar mecanismos para destinação dos dados deixados por pessoas falecidas, acolhendo os interesses patrimoniais e afetivos dos herdeiros, no que vem se consolidado como memória digital.
(*) Vanessa Ribeiro possui LL.M. pela University of California Berkeley.
(*) Felipe Zular é graduado em Direito pela USP.
(*) Deborah Borba é graduanda em Direito pela PUC-SP.