Necessitamos de mais um marco regulatório da atuação das ONGs na Amazônia?
Nos últimos dias, fomos mais uma vez tomados de surpresa pela informação de que há uma iniciativa no governo federal, advinda do Conselho Nacional da Amazônia Legal, propondo “controlar” as atividades das ONGs, especialmente na Amazônia, na defesa dos “interesses nacionais” (parte do Plano Estratégico 2020-2030 do Conselho Nacional da Amazônia Legal – CNAL, com linguagem um pouco mais institucional e técnica, mas exposto em apresentação sobre a 3ª reunião do CNAL, com tom bastante mais incisivo).
1. Pela forma como essas informações são veiculadas, no caso pela apresentação do CNAL, pode até parecer que as organizações não governamentais (em seu sentido genérico) não precisam seguir legislação alguma. Muito ao contrário. Sempre houve regras para se estabelecer ou formalizar uma organização da sociedade. Sem um estudo jurídico muito aprofundado, pode-se notar que há regramento no chamado Código Civil (pelo menos desde 1916, revisado em 2002).
Não faz muito tempo que o País discutiu por alguns anos e aprovou a Lei nacional nº 13.019, de 2014 (alterando as anteriores Leis nº 8.429, 1992, e nº 9.790, 1999), logo ajustada pela Lei nacional nº 13.204, de 2015, chamada de Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).
Pode ser considerado que há associações da sociedade para interesses dos próprios membros e outras organizações da sociedade com atuação de interesse público, indo além do próprio grupo formador. A sociedade tem um campo privado, formado por indivíduos, empresas, associações de interesse próprio e organizações de interesse da sociedade, cada componente da sociedade subordinado às leis gerais do País e às específicas, tanto relacionadas pelo tipo de organização, como em relação aos seus locais de atuação.
Não existe definição legal de “organizações não governamentais” (ou ONGs). Mas, de modo geral, são entendidas como aquelas organizações da sociedade que atuam no interesse público (além do interesse próprio do grupo formador), em temas diversos, incluindo assistência social, apoio à educação, promoção do desenvolvimento sustentável e defesa do meio ambiente. As chamadas ONGs são associações ou fundações, segundo o Código Civil, e organizações da sociedade civil, segundo o marco regulatório próprio –já existente–, como apresentado acima.
2. Parece curioso que haja atenção especial sobre a Amazônia. Segundo repetidas argumentações de membros do governo, as chamadas ONGs estariam concentradas na Amazônia e, a pretexto de defesa do meio ambiente, atuariam a serviço de interesses internacionais. Isso não coincide com os dados do IBGE e estudos do Ipea.
Outra argumentação é de que há financiamento internacional para atuação dessas ONGs. E sobretudo de que elas, ao proporem a conservação da Amazônia, estariam a serviço de interesses de outros países. Uma análise mais isenta revelaria contexto muito mais complexo. Haveria que considerar que a conservação da Amazônia não seria de interesse para o Brasil. Isso é claramente equivocado por várias perspectivas.
Para começar, na Amazônia há povos indígenas e outras comunidades tradicionais, os quais, além do direito a sua reprodução sociocultural diferenciada, vivem em estreita relação com os ecossistemas, com seu uso sustentável, e colaboram com sua conservação em benefício de toda a sociedade. Em segundo lugar, vale lembrar que a ciência segue descrevendo novas espécies na Amazônia a uma taxa surpreendente. Desprezar essa riqueza – das espécies, dos ecossistemas e dos conhecimentos dos povos e comunidades tradicionais –, além de perder conhecimento e natureza, é uma falta de inteligência no caminho do desenvolvimento. Dentre os serviços que os ecossistemas amazônicos nos prestam, às sociedades, brasileira e outras, vale destacar, pois a manutenção da Amazônia garante o fluxo de umidade pela atmosfera que é parcialmente responsável pelas chuvas na própria Amazônia e no centro-sul da América do Sul, fundamentais para a atividade econômica agropecuária.
3. O terceiro tema que vale a pena enfocar é o de interesses estrangeiros, estranhos à maioria da sociedade, inadequados aos interesses nacionais ou similares.
Estudos mostram que há muita diversificação de fontes de financiamento. Há alguns anos se acusava as chamadas “organizações não governamentais” de receberem muitos recursos governamentais. Atualmente se acusa essas chamadas ONGs de receberem recursos internacionais. Antes a acusação era de interesses estadunidenses, agora a acusação vai para interesses europeus. O que parece mais claro, no entanto, é a diversidade de situações, incluindo projetos, associados, doações, prestação de serviços etc., locais, nacionais e internacionais, entre outras possibilidades.
Vale também refletir sobre uma das suposições subjacentes às acusações: o interesse das outras nações seria diferente do brasileiro. Se a Amazônia contribui com o bem-estar, as atividades econômicas atuais e grandes potenciais de desenvolvimento alternativos para todo o mundo, por que isso seria negativo ao Brasil? A menos que os brasileiros virassem as costas a esses benefícios e potenciais – como, de fato, alguns brasileiros o fazem.
O que parece, na verdade, é que é a acusação (de que ONGs atuam na conservação da natureza e na defesa dos povos e comunidades tradicionais) e é a tentativa de retirá-las de campo que acabam por servir aos interesses internacionais e nacionais de exploração não sustentável das riquezas nacionais (dos recursos minerais, do solo, do clima, da biodiversidade…) em benefício de uns poucos, muitas vezes não nacionais ou brasileiros associados a interesses internacionais.
4. Algumas organizações da sociedade brasileira associadas com financiamento internacional têm de fato atuado na defesa da natureza, dos povos e comunidades tradicionais e do desenvolvimento sustentável na Amazônia.
Em exemplo recente e atual, a partir de parceria de há alguns anos do ICMBio e da Funai com os EUA (sim, inicialmente com o Serviço Florestal dos EUA e atualmente por meio da US-Aid), várias organizações da sociedade civil, tanto as locais, representando interesses dos povos e comunidades tradicionais, como aquelas atuando na assistência técnica e organizacional, com sede na Amazônia e fora dela, têm organizado cadeias de valor (da produção à comercialização, passando pela melhoria do beneficiamento) de produtos da floresta – portanto em prol do desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Em outro exemplo interessante, forte desde o final da década de 1990, ainda atuante recentemente, organizações da sociedade civil ajudaram significativamente, tanto com assistência técnica, como com recursos econômicos e financeiros, em programas governamentais de criação e manutenção de áreas protegidas, em escala que a Amazônia merece, como no caso do Programa Arpa – Áreas Protegidas da Amazônia Brasileira, nos últimos anos exemplo influenciando iniciativas benéficas também na Colômbia e no Peru. Trata-se de apoio dessas organizações no fluxo de recursos e capacidades para defesa de interesses nacionais e internacionais.
5. Portanto, há organizações da sociedade civil, dedicadas ao interesse público, atuando na defesa da natureza, dos povos e comunidades tradicionais, atuando em defesa da Amazônia, com fontes de financiamento internacionais. Assim como há organizações da sociedade civil atuando em várias outras partes do País, em vários outros temas, com várias outras fontes de financiamento – inclusive uma parte muito significativa sendo de organizações que têm vínculos com religiões, que atuam em prol de temas sociais, sobretudo nas regiões Sudeste e Nordeste e com financiamento da própria sociedade brasileira.
As questões que se colocam são o que é o “interesse nacional”, se existe só um interesse nacional e se o interesse nacional seria necessariamente antagônico a interesses de outros povos, outras nações, outros países, outras sociedades, outras economias etc.
Seria contra o interesse nacional a defesa da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável? Seriam favoráveis ao interesse nacional a defesa da exploração de minérios a qualquer custo, a exportação de produtos agropecuários com prejuízo das nossas florestas, dos nossos rios e dos nossos povos e comunidades tradicionais?
As organizações da sociedade civil precisam de mais um marco regulatório, agora especificamente para o controle da atuação das ONGs na Amazônia? As empresas e os cidadãos brasileiros necessitam de maior controle do Estado?
(*) Claudio Maretti é geógrafo, ex-presidente do ICMBio, especialista em áreas protegidas; atualmente realizando pós-doutorado em Conservação Colaborativa na USP