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Neoliberalismo, trabalho e o tempo que não dá tempo

André Dias Mortari e Tayse Palitot (*) | 15/07/2021 08:30

Segundo dados do IBGE e do DIEESE, em 2019 a informalidade no Brasil atingiu 41,6% das/os trabalhadoras/es, maior patamar desde a reforma trabalhista. Enquanto em 2018, 71 mil pessoas foram contratadas pelo modelo de trabalho intermitente, em 2019 esse número passou para mais de 155 mil. Entre 2014 e 2019 a taxa de sindicalização caiu de 16,1% para 11,2% das/os trabalhadoras/es e aumentou em 4,7 milhões o número de pessoas em situação de extrema pobreza.

Trabalho por aplicativo, complementação de renda nos finais de semana, bicos e toda forma de monetização das atividades cotidianas se tornaram uma saída para sobrevivência. Durante a pandemia, esse cenário tem se intensificado e atingido segmentos que pareciam não ser afetados por essa lógica. Na universidade, trabalhadoras/es e estudantes relatam que durante o trabalho e o ensino remoto não se acha mais tempo pra nada, é um tempo que não dá tempo. Contraditoriamente, muita gente se diz feliz, pois acredita que agora é dona de seu próprio tempo.

A cada dia mais pessoas têm organizado suas vidas seguindo uma forma de viver pronta, à qual basta tentar se adaptar e seguir. A vida cotidiana entra nos circuitos do mercado e nas práticas de gestão, tornando-se um pequeno negócio. Nesse contexto, a única transformação possível é a individual, inviabilizando o horizonte de mudanças estruturais; estudar experiências organizacionais a partir de diferentes premissas pode, portanto, contribuir para a superação das estruturas que nos colocam nessa letargia.

O neoliberalismo não é um sistema que regula apenas as relações econômicas, ele constitui um conjunto de dispositivos, crenças, discursos e práticas que determinam um novo modo de organizar todas as esferas da vida social em um cenário de competição generalizada.

Nesse sentido, a razão neoliberal tende a transformar tudo a sua imagem, desde política e trabalho até a ação social e a vida cotidiana com seus tempos e espaços. No entanto, é possível romper com a aparência de inevitabilidade do qual ele se reveste. A construção cotidiana de lutas sociais revela caminhos e formas de organizar que não se estruturam pela lógica do mercado

Para o sociólogo francês Henry Lefebvre, a vida cotidiana era muito mais do que passear com o cachorrinho pelo bairro. O autor foi crítico de duas vertentes do pensamento. De um lado, o positivismo (assim como o empirismo), o qual ao mesmo tempo que buscava sua validação pela concretude em que seus achados se davam, falhava por expressar a fragmentação que a experiência oferecia, incapaz de abranger o todo. De outro lado, estava a abstração filosófica que, embora colocava em conexão os elementos e fragmentos descobertos, não podia realizar-se em si mesma, andar solta, desconectada do concreto. Assim, o cotidiano representa a mediação entre o abstrato e o concreto, permitindo criticar a prática pelas ideias e as ideias pela prática. Com isso, era possível criticar as mistificações da vida cotidiana, ao mesmo tempo que concedia à teoria o contato com as reais potencialidades, só extraíveis do mundo vivido.

O autor defende que na busca de conforto e sensação de harmonia é comum desdramatizar as relações cotidianas. As pessoas vivem em ambiguidade, agem em contradição, embriagadas por ideologias que dão a falsa impressão de encaixe entre as diversas esferas da consciência e da prática. Dessa forma, agir em oposição ao fluxo das estruturas impostas se torna uma tarefa improvável. Não é uma questão de falta de atitude, mas de falta de visão sobre caminhos possíveis.

Durante a construção cotidiana de atos, greves e ocupações, novos tempos e espaços se estabelecem em relação ao cotidiano programado e repetitivo de trabalhadores e estudantes. Na organização desses eventos, os espaços de debate e decisão são desierarquizados, o que traz à tona uma disputa que está aí para ser enfrentada e que existe coletivamente a opção e condição de mudar a realidade. Assim, cria-se um terreno fértil em que o velho e o novo se confrontam, gerando movimento, com avanços e tropeços.

Além disso, o contato com a pluralidade de conhecimentos, práticas e problemas amplia a visão sobre o todo e concebe um entendimento mais social do mundo e de si mesmo.

Nesse sentido, premissas que tomam as/os sujeitas/os como autônomas/os, soberanas/os, autocentradas/os, determinadas/os por si mesmas/os, independentemente do social e das determinações estruturais, são desmistificadas pelas noções de representatividade, construção coletiva, horizontalidade das relações, caráter social do trabalho e solidariedade. O processo de desalienação e nova alienação é complexo, afinal, a alienação é ampla, dialética, nunca total ou vazia e é sempre relacionada a um quadro de referência.

Em oposição à lógica mecanizada e competitiva que vê nas pequenas tarefas ou na busca de dinheiro um objetivo em si, durante a construção de lutas sociais ocorre um retorno à condição natural de existência. Sob esse ponto de vista, não provoca um rompimento com o cotidiano, mas a sua reconstrução, já que se vive em uma quebra continua. No trabalho alienado, as pessoas não conversam, interagem ou existem realmente uma com as outras; agem conforme regras e normas que embrutecem e automatizam suas ações.

Diante de relações planificadas, a liberdade se restringe a escolhas banais, como a cor ou o tamanho. Qualquer opção fora disso gera confusão e insegurança, o que deixa claro que ninguém é ensinado a ter liberdade. No entanto, durante a construção cotidiana de eventos, as pessoas se reintegram ao curso natural das coisas, ao agir com as/os outras/os, ao conversar e atuar de uma forma não de ruptura, mas de encontro e reencontro.

Em tempos de pandemia, a teorização sobre organização, tomando as lutas e os movimentos sociais como objeto de estudo, abre caminho para a chegada de novos tempos. A crítica da vida cotidiana revela sua miséria e sua riqueza, mas descrevê-la não é o bastante, é preciso transformá-la.

(*) André Dias Mortari é técnico administrativo em Educação no PPGCOM e doutorando em Administração.
(*) Tayse Palitot é docente do curso de Direito da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

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