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Nos tempos do rio

Heitor Rodrigues Freire (*) | 14/11/2020 13:51

Quando dei baixa no Exército, em janeiro de 1960, decidi me mudar para o Rio de Janeiro para estudar. Meu pai concordou, mas disse que não poderia me sustentar por lá, eu teria que trabalhar e me virar sozinho. Como já trabalhava desde os meus 7 anos, aceitei o desafio.

E parti para o Rio. Logo que cheguei, me hospedei numa pensão na Lapa, no Beco das Carmelitas, 3, bem no centro da cidade. Pensão do Seu Tonico, um imigrante português, homem de poucas palavras. A mensalidade incluía café, almoço e jantar.

Logo de cara fui procurar trabalho. Nessa época, morava no Rio a minha prima Maria Isabel Cândia, que chamávamos de Negra, casada com o Silvio de Carvalho Leal, funcionário do Banco do Brasil e secretário particular do deputado federal Rachid Saldanha Derzi (naquela época o Rio ainda era a capital do Brasil, onde ficava a sede da Câmara dos Deputados).

O Sílvio, muito solícito, me conseguiu uma carta de apresentação do dr. Rachid dirigida ao dr. Francisco Rodrigues, diretor do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Fui prontamente atendido e submetido a uma prova, sendo admitido e enviado para trabalhar na agência Copacabana, localizada na rua Figueiredo Magalhães, Posto 4. A Negra morava na rua Santa Clara, bem perto dali.

Acontece que desde que cheguei na cidade, demorou um certo tempo até conseguir esse emprego, e quando fui aprovado eu já estava devendo um mês da pensão. Seu Tonico não quis conversa, penhorou minhas roupas e me colocou para fora da pensão, e nem adiantou dizer que no dia seguinte eu já começaria a trabalhar. Ele só permitiria que tomasse banho na pensão.

Naquela noite, fui andando por ali, pensando onde iria dormir. Na avenida Augusto Severo, próxima do bairro da Glória, havia um mosteiro beneditino. Chegando lá, reparei que entre o muro do mosteiro e a calçada tinha uma área de grama fofa em que eu poderia dormir meio escondido. Arrumei uns jornais velhos e me acomodei ali mesmo para dormir. Foi uma noite de muita reflexão ao relento, olhando pro céu. Pelo menos não choveu naquela noite.

No dia seguinte, acordei logo cedo e fui para a pensão para tomar banho e seguir para o meu primeiro dia de trabalho no banco. Chegando na pensão, a mulher do português me viu e perguntou o que tinha acontecido – ela não sabia que o marido tinha me botado pra fora e que dormira na rua. Quando contei, ela chamou o velho e deu-lhe uma bela bronca, indignada por ele ter feito isso comigo. Ele ficou todo constrangido. E ela me disse que já que eu começaria a trabalhar naquele dia, poderia continuar na pensão, sim – mas sem direito à alimentação –, e quando recebesse meu primeiro salário, eu pagaria.  Foi um alívio.

Na pensão tinha uma garçonete espetacular, Meire, muito simpática, morena, dentes lindos, corpo escultural e um belo traseiro. Quando ela servia as mesas ou retirava os pratos, percebia naturalmente que todo mundo ficava de olho nela, com aquela abundância toda. E ela, toda charmosa, se arrebitava bem, até quase chegar na cara de cada um de nós, maravilhados. Seu Tonico ficava de olho, para evitar que alguém mais afoito passasse a mão na Meire. Eu e ela começamos um flerte, e me convidou para um arraial junino num morro próximo dali. Chegando lá, logo percebi o quanto ela era querida. E fui observando. Dança daqui, dança dali, ela me convidou para “passar na brasa”, isto é, pisar na brasa quente. Mas eu recusei. Ela, valente, tirou a sandália e lá se foi toda rebolante. Quando voltou, pelo seu olhar, percebi que minha intenção, não tão oculta, já tinha ido pro espaço. Perdi a vez, e ela nunca mais me convidou para nada. Pouco tempo depois, a Meire foi conquistada por um dos clientes da pensão e se mandou com ele pra nunca mais voltar.

Naquela época, eu não tinha dinheiro nem para pagar o bonde, então tinha que ir a pé para o banco, que ficava em Copacabana, longe pra burro para quem tinha que ir caminhando. Eu levava mais ou menos 3 horas para chegar ao apartamento da minha prima. Expliquei a situação, e a Negra me convidou para almoçar todos os dias na casa dela. As coisas foram se encaixando aos poucos. E assim foi durante uns quinze dias. O pagamento do banco era quinzenal, e ao receber o meu primeiro salário, separei uma parte para o bonde e com o restante comecei a pagar a pensão.

Eu me dei muito bem no banco. Logo depois, fui promovido para o setor de cadastro, o que me proporcionou um aumento de salário, e me deu a oportunidade de circular pelas ruas a trabalho para colher informações cadastrais dos clientes. Comecei, assim, a conhecer o Rio sendo muito bem pago pra isso. Bons tempos. Tem mais história.

(*) Heitor Rodrigues Freire é corretor de imóveis e advogado.

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