Novos “valores” do serviço público, velhos problemas
No mês de outubro, a Controladoria-Geral da União (CGU), em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), lançou um projeto para escolher os “valores” do Serviço Público Federal, em que os próprios servidores federais de todo o Brasil podem votar para escolher quais valores, portanto, irão orientar e balizar a cultura da administração pública.
Uma vez escolhidos os valores, a ideia é que eles passem por um processo de seleção e validação por representantes do setor privado e da sociedade civil e sejam desenvolvidas ações de promoção no serviço público federal. Conforme indica o documento base do projeto, assim “Finalmente serão consolidados os Valores do Serviço Público Brasileiro”.
No entanto, em que pese o tom entusiástico do projeto em “criar uma cultura no serviço público com base em valores”, escolhidos pelos próprios servidores (ou seja, dando um tom de participação no processo decisório), ele revela um conjunto de conceitos prévios (ou pré-conceitos) que funcionam como uma cortina de fumaça escondendo velhos problemas que perpassam o serviço público. Refiro-me aqui à baixa valorização do funcionalismo e à busca de subterfúgios para culpabilizar o agente executor da maioria dos serviços nacionais pelas mazelas e problemas da administração pública.
Refletir criticamente sobre esse projeto é, portanto, o objetivo deste artigo, em que defendo que é preciso reforçar os princípios já existentes na Constituição Federal de 1988 e fortificar materialmente as capacidades estatais para avançar na qualidade de entrega de serviços públicos, em vez de se criarem falsos dilemas.
Pensar nesses aspectos nos dias atuais não é trivial, dado que o servidor público está sob “descrédito” e desvalorização pelo atual governo e sob ameaça de um conjunto de reformas que buscam esvaziar seu papel social e público. Iniciamos observando alguns aspectos do projeto.
Pensar em criar valores no serviço público nos leva a intuir, automaticamente, que eles inexistem ou, se existem, não são seguidos e executados no cotidiano pelos trabalhadores. Esse é um primeiro problema encoberto pelo projeto, pois reforça um imaginário social negativo – em torno do servidor público – de que sua prática é guiada por interesses particulares, pela falta de dedicação e apreço ao trabalho, pela ineficiência, entre outros qualitativos costumeiramente repetidos. Não podemos esquecer que há pouco tempo o próprio presidente da República qualificou alguns servidores públicos (em especial professores) como as zebras gordas que deveriam ser abatidas.
Cabe relembrar, entretanto, que desde 1988, no momento da promulgação da nova Carta Constitucional, os princípios da administração pública de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, posteriormente, eficiência (incluído pela PEC 19/1988) têm guiado a base de atuação e formação dos valores individuais dos servidores, produzindo, assim, uma cultura organizacional própria e distinta do campo privado.
Se é certo que é preciso avançar na sua concretização, disseminação e adensamento nas práticas cotidianas para evitar desvios e abusos, não é por meio da criação de novos valores, que em muitos casos não passam de novos títulos para os velhos princípios, que se resolverão esses casos.
Com efeito, pode-se buscar justificar a ideia do projeto com base no argumento de que princípios e valores não são sinônimos. Ademais, existem princípios para a administração pública e não para o serviço público – diretamente. Mas é preciso questionar: se há princípios, ou seja, um fundamento mais geral que define regras gerais à ação, ou, conforme o dicionário, que impõe uma norma moral social à administração pública – portanto guiando o cotidiano dos serviços e dos servidores-, qual o sentido de se produzirem novos “valores”?
De forma geral, subliminarmente, o projeto dá o tom de que as “velhas regras” não são implementadas ou são insuficientes para o sucesso do serviço público, reforçando a imagem e a autoimagem negativa do Estado e do servidor público, ensejando a ideia de que ele precisa ser reformado a todo o momento e aproximado da lógica privada.
Entretanto, a despeito da diferença semântica, não é possível observar uma diferença qualitativa na ideia de princípios e valores, tampouco vislumbrar eficácia prática nesses novos valores individuais propostos pelo projeto.
Cabe aqui um exame mais acurado dos valores propostos pelos servidores no projeto em análise e como avançam ou reforçam os princípios já existentes:
O valor engajamento, que pressupõe o comprometimento do servidor público com suas funções, redunda com o princípio da moralidade. Um princípio que impõe a ética de se agir conforme a moralidade pública, o fim público e não o privado. Ou seja, é um princípio que naturalmente engaja o servidor em uma lógica que deveria ser clara desde a prestação de um concurso público: a causa coletiva e social do trabalho público. Quando se ingressa no serviço público e se tem acesso à máquina estatal – capaz de transformar a vida de milhares de pessoas -, a moralidade a ser perseguida deveria ser sempre essa, a de prestar o melhor serviço e lutar por uma sociedade mais justa e com serviços de qualidade.
A integridade, conforme o texto, pressupõe atuar de maneira correta, honesta e proba.
A imparcialidade impõe a maneira de agir sem preferências de quaisquer tipos.
Esses dois valores, assim como o acima mencionado, simplesmente redundam e dão outro nome ao velho princípio da impessoalidade. Tal princípio indica que, no cotidiano do serviço público, deve-se guiar sempre pela primazia da finalidade do interesse público em detrimento dos interesses privados. Ou seja, nada novo, simplesmente uma nova cara a velhas questões.
Poderíamos aqui analisar cada valor sugerido pelo projeto: o profissionalismo, a gentileza, a justiça, a parceria ou a transparência, porém me parece oportuno destacar outra questão de fundo, problemática no projeto: a sobreposição e a confusão com os novos princípios sugeridos na PEC 32/2020, que busca reformar o setor público.
De acordo com a referida PEC, serão novos princípios da administração pública: a legalidade, a impessoalidade, a imparcialidade, a moralidade, a publicidade, transparência, a inovação, a responsabilidade, a unidade, a coordenação, a boa governança pública, a eficiência e a subsidiariedade.
Fazendo um exame crítico da nova proposta da PEC, logo se observa a sobreposição dos novos aos velhos princípios (analisando em seu sentido prático, para além do jogo semântico), assim como se observa a sobreposição dos valores sugeridos no projeto da AGU.
Por exemplo, a imparcialidade e a responsabilidade estão contidas no princípio da impessoalidade e moralidade; a transparência, contida no princípio de publicidade e impessoalidade; a boa governança pública, não deixa claro o que sugere, além de ser um princípio amplo e indefinido; já a unidade, a coordenação e a subsidiariedade parecem termos para uma mesma questão de relação intra e intergovernamental necessária no serviço público, mas que, igualmente ao termo ‘governança’, não esclarece seu sentido.
Por fim, é necessário pensar nos fundamentos, no que está velado por trás dessas ideias propostas pelo governo federal no contexto atual.
Apesar de aparentar boas intenções, ela esconde a essência de modelos reformistas já bastante conhecidos que desejam “culpabilizar” o servidor pelo “mau” funcionamento da máquina pública, logo justificando expô-la a reformas de enxugamento e desvalorização; esconder os problemas reais enfrentados no cotidiano do serviço público que, em todos os níveis governamentais, enfrenta precariedades, falta de financiamento e de recursos humanos; e, por fim, maquiar um processo reformista autoritário, dando uma cara de democracia e participação ao envolver o servidor no processo.
É preciso estar atento ao processo de desmonte do serviço público atual. Em lugar de nos perdermos em jogos semânticos e propostas reformistas veladas, como essa em análise, é preciso defender o serviço público e o seu servidor na prática – reforçando os princípios já existentes e batalhando pela valorização real, e não apenas formal, como nos sugerem essas propostas.
(*) Luciana Pazini Papi é professora do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal (NUPEGEM).