O desafio de Eduardo Lourenço à cultura brasileira
Eduardo Lourenço de Faria (1923-2020), mais conhecido como Eduardo Lourenço, foi um importante filósofo, ensaísta, crítico literário e intelectual público português que veio a falecer no final do ano passado. Nascido em São Pedro do Rico Seco, uma aldeia na região da Beira Interior, em Portugal, cursou Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra. Lá também iniciou sua trajetória como professor universitário. Foi primeiramente assistente da Faculdade de Letras, colaborando com o professor Joaquim de Carvalho. Nesse início de sua carreira, entre o final dos anos quarenta e início dos anos cinquenta, publica seu primeiro livro, intitulado Heterodoxia, o qual consistia em uma versão de sua tese de licenciatura. Depois foi lecionar nas universidades de Hamburgo, Heidelberg, Montpellier e da Bahia, exercendo nessas instituições o papel de professor de Cultura Portuguesa. Desde os anos sessenta, atuou como professor na França, lecionando em Grenoble e depois em Nice, onde ficou até o final dos anos oitenta. Seu livro mais conhecido – O labirinto da saudade: psicanálise mítica do povo português – foi publicado no final dos anos setenta, alguns anos depois da Revolução dos Cravos. O conjunto de sua obra não tem tido a circulação que mereceria no Brasil, embora alguns de seus títulos tenham sido publicados em nosso país pela Companhia das Letras.
É um dos autores contemporâneos que melhor pensou o tema da identidade cultural portuguesa. Escreveu sobre Portugal com uma fina escrita, que tem uma fluência e um encadeamento muito particular, o que fez com que Eduardo Lourenço fosse considerado um dos escritores que melhor escrevia em língua portuguesa. Tal reputação, construída a partir do reconhecimento público de sua extensa e importante obra, lhe valeu o recebimento do Prêmio Camões (1996), do Prêmio Pessoa (2011), a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura em Portugal (2008) e do Prêmio Vergílio Ferreira (2001), entre outros. Recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa, pela Universidade de Bolonha e pela Universidade de Coimbra. É autor, dentre muitos outros, de Mitologia da saudade, publicado pela Companhia das Letras; e do livro A nau de Ícaro, publicado em Lisboa, pela Editora Gradiva.
O que Eduardo Lourenço tem a dizer para o Brasil? Muito. Ao trabalhar Portugal como um povo que teria criado uma mitológica vocação universalista, Eduardo Lourenço reflete sobre os desafios do período de mundialização, sem deixar de atentar para as relações entre a antiga metrópole portuguesa e o Brasil. Para o escritor, o modo como os portugueses nos veem faz do Brasil “um outro, mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eduardo Lourenço – sobre as relações entre Portugal e Brasil – dirá que “o conceito de descoberta não tem o mesmo sujeito para quem do seu ponto de vista, descobriu e para quem do ponto de vista oposto (mesmo só na consciência futura do encontro), foi descoberto”.
Eduardo Lourenço certamente convoca a cultura brasileira a repensar a si mesma quando diz que o discurso cultural do Brasil rasura a raiz lusitana de onde, em parte, procede. Lourenço destaca que os brasileiros reconhecem hoje outras heranças, mas não a portuguesa, como suas matrizes legítimas. E que, em virtude disso, há um descompasso nas relações Portugal e Brasil. O discurso português sobre o Brasil foi, nas palavras de Lourenço, “pura alucinação nossa, que o Brasil – pelo menos desde há um século – nem ouve nem entende”. O diálogo entre Portugal e Brasil teria se dado – na visão do escritor – como um diálogo de surdos no qual decididamente Portugal não se apresenta como um problema para os brasileiros. É como se o Brasil reconhecesse como legítima sua herança indígena e sua herança africana, mas deixasse de reconhecer sua herança portuguesa. Isso geraria uma incompreensão mútua das duas culturas. Para Eduardo Lourenço, o Brasil pretende sempre abrasileirar o seu passado, afastando-se da origem lusitana.
Tal interpretação data do final do século passado. Desde então a imigração brasileira em Portugal foi intensificada de maneira exponencial. Desde então, os laços luso-brasileiros de comunidades científicas no ambiente acadêmico se estreitaram sobremaneira. Resta saber se aquela imagem de Brasil ainda persiste como válida e atual. Seja como for, Eduardo Lourenço interpela o discurso sobre a cultura brasileira; e nessa condição merece ser lido. E porque somos um pouco também filhos da cultura portuguesa, a leitura de sua obra nos parece um convite à compreensão de nós mesmos.
(*)Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP, onde leciona Filosofia da Educação.