O drama da falta de políticas consistentes de moradia e saúde
Vira e mexe, vem-me à memória minha época de escola. Português era português, matemática era matemática; o mundo parecia menos complexo, quando o conhecimento era compartimentado pelos professores em diferentes matérias.
Depois, ao me formar e deixar os muros do colégio, percebi que a vida é uma mistura caótica de tudo, com números, letras e conceitos que se fundem. Há biologia dentro da história. Há química dentro da geografia.
Pensemos, por exemplo, no que é necessário para ser uma pessoa saudável. Manter uma boa alimentação, praticar atividades físicas, dormir bem, ir ao médico com regularidade. Todos sabem.
Mas e o lugar onde moramos? As horas que levamos de casa até o trabalho? O dinheiro que temos no bolso? Pode não parecer, mas tudo isso influencia diretamente a nossa saúde. Portanto, é essencial lidar com essas diversas variáveis ao mesmo tempo para viver com qualidade.
Há, no entanto, muitas pessoas (às vezes bem perto de nós) que não têm acesso a saneamento básico ou à assistência médica; que moram em áreas de risco; que sentem o estômago roncar quando falta comida; que mal dormem, porque labutam durante a maior parte do dia e dependem de um sistema de transporte ineficiente, que lhes rouba horas de sono.
Ao final de fevereiro — como acontece a cada verão em diversas partes do Brasil —, o litoral norte de São Paulo sofreu com a grande quantidade de chuvas. O alto índice pluviométrico, combinado com a desigualdade social e a falta de políticas públicas eficazes, que permitiram que habitações fossem construídas em zonas inadequadas, ceifou a vida de homens, mulheres e crianças.
Menos de uma semana após a tragédia, como era de se esperar, os casos de gastroenterite cresceram nas áreas atingidas. Em São Sebastião, cidade que ficou coberta por água e lama, a procura por atendimento médico aumentou 30%, com pessoas relatando dores de estômago, náuseas, diarreias. Moradores comentaram mudanças na cor da água e um cheiro pútrido vindo das valas de esgoto a céu aberto e dos desmoronamentos.
Podemos citar outras cidades bastante desiguais, Rio de Janeiro e Recife, que têm mais de 20% da sua população residindo em favelas e construções de risco. Em 2017, de acordo com o Ministério da Saúde, o Rio teve uma média de 88,5 casos de tuberculose a cada 100 mil habitantes; Recife, 85,5.
Doenças como essa estão ligadas ao contato social — domicílios com pessoas aglomeradas e pouca circulação de ar, assim, fazem com que a tuberculose se propague.
É especialmente nestes momentos pensar em saúde significa levar em conta geografia, matemática, história, sociologia...
Não devemos nos esquecer das catástrofes, dos desequilíbrios sociais, dos nossos péssimos índices, e nem colocá-los na conta do acaso. Vivendo em um país em que a dor de uns gera lucro para outros, o que precisamos fazer é cobrar a elaboração de políticas públicas que melhorem a vida dos que mais precisam.
(*) Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica