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O fim do aprendizado do contraditório e a morte da democracia

Janice Theodoro da Silva (*) | 25/11/2021 08:30

OInstituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep, como indica o seu nome, é uma instituição criada para a realização de pesquisas e estudos educacionais com a finalidade de orientar políticas públicas. Criado em 1937, teve sua importância ampliada graças ao educador baiano Anísio Teixeira. O Inep é uma instituição de Estado, formada por um corpo técnico qualificado, com atuação independente em governos de diferentes perfis ideológicos.

As pesquisas realizadas pelo Inep, ao longo de décadas, permitem uma avaliação da educação no Brasil, se garantida a utilização dos mesmos parâmetros para as medidas. É possível, com as bases de dados do Inep, localizar escolas e estudantes com maior ou menor dificuldade no processo de alfabetização, números da evasão escolar por série e escola, localizar áreas específicas de conhecimento onde os alunos apresentam maior dificuldade, entre tantos outros problemas da educação brasileira.

De posse dos dados o Estado brasileiro elabora políticas com vistas à melhoria da educação. Os métodos utilizados para a melhoria do ensino e do funcionamento da rede escolar têm sofrido alterações ao longo dos séculos. Para se ter uma ideia das mudanças basta lembrar o fato de, na primeira metade do século XIX, as meninas serem consideradas incapazes de aprender geometria. Esta disciplina era oferecida apenas para os meninos, futuros engenheiros ou militares envolvidos nos cálculos balísticos voltados para a guerra. As meninas eram mais estimuladas nos bordados e costuras.

A educação, nos séculos XIX e boa parte do XX, valorizava a memória. Práticas como copiar várias vezes as lições ou mesmo a escrita de uma palavra era comum. O exercício de declamação de poesias memorizadas era frequente. O hábito da repetição é fruto de um mundo pouco afeito a mudanças, justificado em textos bíblicos, pouco afinado com a criação de novos hábitos e costumes. As mudanças trazidas pela tradição iluminista, pelo uso da razão, baseada na experiência, demoraram para ser implantadas, especialmente na área educacional e nas práticas pedagógicas. Mas apesar das dificuldades históricas e culturais as mudanças ocorreram, tanto no nível pessoal, como institucional e político.

Alguns especialistas voltados para a temática da educação, críticos das antigas formas de percepção do mundo, identificaram procedimentos cognitivos que, se bem desenvolvidos nas crianças e nos jovens, poderiam facilitar a vida das pessoas em sociedade. Os especialistas, mediante experiências com métodos científicos, baseados na observação e experimentação, consideraram importante desenvolver, nas crianças e jovens, algumas habilidades e competências necessárias para a vida em sociedade. Tratava-se de método para a resolução de problemas colocados em circunstância, desafios conhecidos ou desconhecidos, onde o agente da ação disporia de instrumentos para agir criativamente e segundo o seu livre-arbítrio. Esse método pretendia formar um sujeito capaz de criar, executar e avaliar (senso de justiça) os resultados finais da sua ação. O sujeito deixava de ser apenas obediente, passivo e memorioso. Por meio do uso da razão ele deveria ser capaz de produzir, inovar e avaliar os benefícios ou prejuízos necessários para a sua sobrevivência e de seu planeta a curto, médio e longo prazo.

Para facilitar, seguem alguns exemplos de habilidades e competências utilizadas em sala de aula.

É importante saber identificar um objeto ou ideia. Explicar por meio de uma narrativa clara, objetiva e sintética uma afirmativa de Adolf Hitler, Martin Luther King ou Mahatma Gandhi, descrever personagens como Macunaíma, de Mário de Andrade, Bertoleza, escrava cafuza, personagem de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, ou Iracema, de José de Alencar, detalhar os recursos retóricos e formais utilizados nas diferentes narrativas.

A habilidade de identificar e seus desdobramentos (descrever e detalhar) é de grande importância. Exige escuta do Outro, identificação com a natureza da narrativa e reconhecimento dos efeitos da ação proposta. É uma habilidade importante, que precede à tomada de decisão. Eu posso estar contra ou a favor de uma ideia, de uma pessoa, instituição ou política de Estado, mas antes preciso saber, com precisão, o que foi dito.

Além de identificar eu preciso saber analisar. Para analisar eu preciso de argumentos e provas. Por exemplo, analisar o que representaram as políticas persecutórias realizadas na Alemanha nazista. As provas – fotografias, depoimentos e ossos – fazem parte do que chamamos um conjunto de provas capazes de comprovar uma hipótese mediante a análise das evidências. Portanto, analisar exige método, habilidade importante de ser desenvolvida. A linguagem matemática e o raciocínio lógico contribuem para que possamos comprovar uma hipótese. Dados estatísticos e suas diferentes formas de utilização representam um aprendizado importante para os estudantes. A linguagem matemática abre muitas portas. Por exemplo permite conhecer o que é um algoritmo, como ele é utilizado nos dias de hoje, fato de grande importância no funcionamento do mundo digital. Aprendizado importante de ser realizado na escola, relacionando sempre meios e fins.

A habilidade que envolve compreensão de uma dada realidade, a mais complexa de todas as habilidades, exige avaliação dos resultados da ação praticada por indivíduos, instituição ou Estado. Para compreender uma realidade é necessário inserir uma situação-problema em uma circunstância. Reconhecer o que significa o bem comum, a liberdade e equidade em uma determinada sociedade. O desafio desta habilidade refere-se ao fato de a ação humana ocorrer em um momento específico, exigindo do indivíduo a compreensão dos valores éticos. A ética é matéria de aprendizado da filosofia e depende de avaliação de um objeto em movimento, de uma relação entre os meios e os fins últimos. Por exemplo: está pegando fogo em uma mata, eu preciso sair em busca de socorro e ultrapasso com o meu carro a velocidade. O fim pode ter justificado o meio.

A prova do Enem tem como propósito avaliar habilidades e competências. São várias. O artigo tratou de poucas delas a título de exemplo. A prova do Enem, os diferentes itens e a redação são selecionados para que possamos avaliar se as habilidade e competências, calibradas em níveis diferentes de dificuldade, foram desenvolvidas pelos estudantes na escola.

Os itens da prova e a redação avaliam a capacidade dos estudantes de argumentar. Portanto, o exame do Enem pressupõe o aprendizado do contraditório, do reconhecimento de proposições, hipóteses que admitam discussão, concordância ou discordância. A prova não pressupõe a existência de uma verdade absoluta, acabada, mas propõe um tema para uma discussão civilizada, atualizada e consoante com argumentação sólida, demonstrando aprendizado da linguagem argumentativa, pilar das práticas democráticas e éticas.

Bolsonaro tem uma concepção de educação ultrapassada. Ele nega a habilidade-mãe da democracia, o contraditório, nega o raciocínio matemático e as provas (como ocorreu no caso das vacinas), nega as discussões sobre método, instrumento do pensamento científico, e nega a mudança de hábitos e costumes consentidas pela maioria, num sistema democrático. Para ele existe uma verdade única e acabada: a do ditador.

Matar a diversidade é uma forma de implantar o pensamento único, o autoritarismo, que não se confunde com o pensamento conservador.

Governos com orientações ideológicas diferentes discutiram e deram andamento para as políticas do Inep. Desde a sua criação as informações continuaram a ser coletadas de forma transparente pelo seu corpo técnico. Ministros da Educação com vocações ideológicas distintas, com origem em diferentes partidos, como Paulo Renato, Fernando Haddad, Cid Gomes, Renato Janine, Mendonça Filho e Rossieli Soares, entre outros, escolheram especialistas em educação para chefiar o Inep, garantindo a manutenção de procedimentos técnicos e respeitando os especialistas da instituição.

Maria Inês Fini, na direção do Inep, realizou importantes análises com a base de dados da instituição, sustentados por análise estatísticas capazes de favorecer políticas públicas voltadas para as reais necessidades da educação brasileira. Ela aceitava o contraditório na sua equipe de trabalho. Parabéns para ela. Tivemos embates e aprendi muito, na concordância e discordância.

A educação é um lugar importante para a construção de uma sociedade democrática. Esta não é uma frase de efeito. A morte do aprendizado do contraditório é a morte da democracia.

(*) Janice Theodoro da Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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