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O “homem de verdade” não existe

João Luiz Marques (*) | 29/11/2020 09:02

Desde que decidi que pesquisaria e escreveria sobre masculinidades, meus dias têm sido centralizados nesse tema – acordo lendo sobre e durmo escrevendo sobre. Em uma de minhas andanças pela internet à procura de vídeos, filmes, imagens, palestras que me dessem um bom tema para abordar, me deparei com uma imagem. Era uma foto de um vidro traseiro de uma caminhonete com a seguinte frase: “no airbags, we die like real men” – em tradução livre seria “sem airbags, morremos como homens de verdade”.

No primeiro momento, fiquei chocado com a intensidade de fantasia que aquela frase tinha: o homem que decidiu colar aquele adesivo no vidro traseiro realmente achava que não ter airbags era morrer como um homem de verdade, como se ser homem fosse garantir resistência suficiente para que, ao bater a cabeça no volante ou em outra parte interna do carro, em um impulso suficiente para espatifar seus miolos, ele sobrevivesse. É como esperar que ter um pênis lhe dê superpoderes de invulnerabilidade. Airbags servem justamente para impedir a colisão e salvar a vida dos que estão dentro do carro. E o que mais me intriga é que possivelmente esse homem vê nessa morte sem proteção uma espécie de honra.

Por mais incrédulo que eu possa ter ficado, entretanto, homens que se pensam imbatíveis e que reivindicam o status de alfa não são raros, muito pelo contrário. Na infância, quando choramos, a frase não é só “Pare de chorar”, é “Pare de chorar, você é homem, seja forte”. E é aqui que o problema começa e a ilusão de super-homem começa a tomar forma.

Não é que percamos só toda a nossa sensibilidade para a vida, seja emocional, seja sensorial, mas além da sensibilidade perdemos também o senso de vulnerabilidade.

Se nos dizem a todo momento que somos fortes, por que, na vida adulta, você cuidaria da sua saúde, mental ou física, ou preservaria a sua vida?

“Ora, se sou um homem, e um homem é forte, eu não preciso ir ao médico, é só uma dorzinha, eu aguento!” ou “Se sou um homem, e um homem é forte, e eu estou me sentindo triste e sem vontade de levantar da cama, certamente não é depressão, isso é coisa de mulher!”. Sustentar essa ilusão tem custado muito caro aos homens.

Quando é sustentado esse papel de macho alfa, o preço é ter a subjetividade anulada, uma vez que os homens são seres humanos como todos os outros. Homens choram, homens não necessariamente serão fortes, são amorosos, gentis, empáticos e sensíveis; homens falham e adoecem. Mas a masculinidade hegemônica, esta que também pode ser chamada de tóxica, tem um objetivo claro: eliminar tudo o que é feminino, inclusive dentro de si. E assim se criam homens que saem por aí ostentando adesivos de virilidade, que objetificam e violentam mulheres, consomem pornografia até viciar, em nome de uma virilidade que precisa ser sustentada a todo momento (se você já esteve em um grupo de homens no whatsapp, reconhece o que estou falando), que à noite muito provavelmente irão usar drogas para amortecer suas frustrações e que definitivamente não levarão a sua saúde a sério.

Lembrem-se que cuidar da saúde é coisa de mulher para esses caras, e eu até compreendo: quem eles viam ir ao médico periodicamente e por toda a sua infância? A mãe.

Veja: na infância tudo é referência, somos esponjas absorvendo o que está a nossa volta, ou seja, tudo o que a nossa família imprime, seja na fala, seja nas ações. Se você vê sua referência feminina fazendo algo, e a cultura machista diz que mulheres são inferiores, negando tudo que venha do ou se relacione ao feminino, você aprenderá a negar esse feminino.

É curioso quando constatamos que os homens cometem suicídio três vezes mais que as mulheres – e a relação que esse dado tem com o adesivo [“we die like real men”], porque, de fato, homens morrem como homens. É sabido que os homens cometem suicídio de formas muito mais violentas do que as mulheres, porque, até para dar fim à vida, é preciso dar fim como homem, morrendo como “homens de verdade”.

Existem diversos motivos que me fazem escrever sobre masculinidade, seja pelo fim do machismo, que adoece homens e violenta mulheres, seja pelo fim do patriarcado, mas também pela saúde mental desses homens cujo trabalho de cura é urgente. Ser o macho alfa é ser homem, branco, hétero, cisgênero, bem-sucedido.

Para os homens brancos já é uma frustração porque pouquíssimos serão bem-sucedidos, e os homens negros ainda menos, porque socialmente lhes será dificultado o acesso à educação e, por sua vez, a bons trabalhos. Mas não pense que, por isso, homens negros não mantenham a ilusão de macho alfa, no sentido de “nós vamos nos pôr à prova sexualmente”, hiperssexualizados, considerados animais sexuais – a cada transa é um troféu do “negão de tirar o chapéu” –, vistos apenas pelo tamanho do seu pênis, e sua existência é diminuída.

Afinal, por que namorar esse homem? É pra transar e se aventurar, mas a saúde mental vai se esgotando. E quando falamos de homens gays e trans é uma outra masculinidade, com suas particularidades, mas que em último grau, se não for desconstruído, acaba dando continuidade de alguma forma ao machismo.

O papel do macho atrofia nossos sentidos, nos faz acumular sofrimentos calados, nos frustra diariamente com metas que a maioria de nós nunca alcançará e que não precisamos alcançar. Esse papel, que prejudica nossa saúde e que encurta nossas vidas, precisa ter seu fim.

Somos todos homens constituídos de fantasias tão frágeis quanto um castelo de cartas – um sopro e a masculinidade desmorona –, não há fundamento, não há estrutura. Precisamos desconstruir para construir uma masculinidade saudável, que não baseie a nossa existência na ilusão e opressão do diferente.

Seria uma masculinidade que entenda que ser vulnerável não é fraqueza, mas, sim, é ser aberto, expressar emoções, conseguir falar sobre seus problemas, lidar com as suas frustrações, cuidar da saúde – não só em novembro, mas todo ano -, conseguir ter uma melhor relação com o mundo, amar e ser amado, não negar qualidades ditas femininas e, antes, abraçar essas qualidades.

É ser um homem em que seu filho se espelhe não pela sua postura de herói e por frases machistas sobre mulheres, mas pela confiança que ele terá em você para contar os seus problemas, te dizer ‘eu te amo’ e procurar seu abraço. Muitos homens não percebem que sua relação com o pai, não raro ruim e distante, é atravessada pelo mesmo machismo que eles defendem. Lutam até o fim da vida para não dizerem que gostariam de ouvir um “eu te amo” do pai.

Precisamos criar grupos de apoio e discutir essas perspectivas de ser homem.

Já fui um tipo de homem que tentava se encaixar no macho alfa. Queria ser uma muralha, e a ansiedade e as crises de pânico me encontraram. Eu escrevo toda semana com o intuito de que mais homens cuidem de si, se libertem dessa prisão e parem de tentar provar a sua masculinidade até em adesivo no carro. Saibam: no dia seguinte da sua morte ninguém vai dizer “É, esse morreu como um homem de verdade”. Absolutamente ninguém se importa com isso, mas há certamente quem se importe com a sua vida.


(*) João Luiz Marques é estudante de Psicologia e escritor

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