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O piso da enfermagem e o federalismo municipal

Por Saulo Gonçalves Santos (*) | 07/01/2024 08:33

A Lei Federal nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, foi a responsável por criar o piso nacional de enfermagem, aplicável as (aos) enfermeiras (os), as técnicas (os) e as (aos) auxiliares de enfermagem e as (aos) parteiras, consoante o artigo 2º da Lei Federal nº 7.498/86.

O artigo 2º, parágrafo 2º da legislação de 2022, ainda determinou que o cumprimento do referido piso deve ser respeitado inclusive por acordos e convenções individuais e coletivas, sendo considerada ilegal e ilícita a sua desconsideração.

Por óbvio, o início da vigência dessa norma trouxe preocupação para os entes públicos e as entidades patronais da área da saúde, considerando o impacto financeiro provocado, bem como a potencialidade para acarretar a perda da qualidade do serviço e prejuízo aos postos de trabalho envolvidos.

Novos questionamentos foram colocados sobre a legitimidade de leis que trouxessem pisos nacionais para categorias profissionais, já que tais normas acabam por não terem condições de equacionar as condições econômicas de entidades locais, como os municípios, que acabam por sofrer impactos financeiros por medidas que não foram apreciadas pelos seus parlamentos.

A colocação de tais observações é importante para serem debatidas em âmbito nacional, pois a Constituição criou um modelo federativo em que os entes municipais possuem autonomia financeira e orçamentária, de modo que são competentes para a criação de despesas na medida das suas receitas, sendo essa análise precisamente efetuada pelos parlamentos municipais.

Em abril de 2023, no julgamento do RE 1.279.765, Tema 1.132 da Repercussão Geral, o STF, por unanimidade, analisando matéria similar, considerou constitucional a fixação de piso nacional para os agentes comunitários de saúde e de combate às endemias. O relator, ministro Alexandre de Moraes, expressamente consignou que tais despesas têm dotação própria no orçamento geral da União, de modo que não haveria violação à autonomia dos entes federativos no caso. Essa observação foi importante para firmar a conclusão do não ferimento da autonomia financeira dos entes locais.

O piso da enfermagem foi levado ao STF por meio da ADI 7.222, tendo o primeiro julgamento ocorrido no dia 30 de junho de 2023, enquanto os embargos de declaração apenas foram apreciados em 19 de dezembro de 2023, encerrando a discussão sobre o assunto.

Na oportunidade do primeiro julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso (relator), em entrevista concedida no dia 27 de junho de 2023, afirmou que o STF entenderia, doravante, pela inconstitucionalidade progressiva dos pisos nacionais, considerando que várias carreiras teriam interesse nesse tipo de benefício, o que acabaria por engessar o estado e a iniciativa privada, prejudicando, no futuro, as próprias pessoas que seriam beneficiadas.

A opinião manifestada pelo ministro, acertadamente, reflete a preocupação que se deve ter com a autonomia financeira dos entes estatais, principalmente os municípios, que são as unidades mais frágeis da nossa sociedade, que sentem incisivamente as alterações normativas promovidas pelo Congresso Nacional que impliquem em gastos públicos.

O Parlamento precisa compreender que os direitos sociais possuem custos que devem ser devidamente sopesados no debate político. Para além disso, o posicionamento do relator demonstra que o Estado vem, paulatinamente, acentuando a descentralização da nossa federação no que tange à distribuição dos ônus e bônus financeiros brasileiros.

Nesse ponto, é importante destacar que foram adicionados os parágrafos 14º e 15º ao artigo 198 da CF/88, por intermédio da EC nº 127/22, publicada em 23 de dezembro de 2023, prevendo que a União prestará assistência financeira aos entes públicos e entidades filantrópicas para a implementação do piso salarial da enfermagem, que deverá constar do orçamento geral da União, com dotação própria e exclusiva.

Essa também foi a diretriz adotada pelo artigo 167, parágrafo 7º da CF/88, introduzida pela EC nº 128/22, impedindo que leis federais criem encargos financeiros, inclusive de pessoal, sem a previsão das respectivas fontes financeiras ou da transferência orçamentária para a realização do custeio, respeitando a autonomia dos entes federados nacionais, bem como consagrando responsabilidade fiscal na realização de gastos públicos.

Portanto, em uma análise cuidadosa, pode-se verificar que Congresso Nacional e STF não estão em absoluta dissonância no trato da matéria relacionada com os pisos nacionais, já que a própria CF/88 vem sofrendo emendas para que a autonomia financeira dos municípios seja respeitada.

Todavia, no julgamento dos embargos de declaração da ADI 7.222, seguindo o voto do ministro Dias Toffoli, o STF avançou na mitigação dos pisos nacionais, estabelecendo premissas que diminuíram os impactos financeiros dos referidos instrumentos, antecipando, de certo modo, a “inconstitucionalidade progressiva” de tais situações, anunciada anteriormente pelo ministro Barroso.

O voto vencedor considerou parcialmente inconstitucional o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei n. 14.434/22, de modo a estabelecer que a aplicação do piso para os profissionais celetistas dependeria de negociação coletiva prévia entre os interessados, facultando-se inclusive a instauração de dissídio coletivo caso a negociação restasse frustrada.

Para além disso, sedimentou-se ainda que o referido piso, tanto para os profissionais celetistas, quanto para os servidores públicos, obedeceria a proporcionalidade em relação a carga horária de 44 horas mensais, acolhendo-se parcialmente as razões apresentadas pelo Senado, CNSaúde e AGU.

Esse ponto acaba por reduzir sobremaneira o valor a ser pago aos profissionais, considerando que um estudo apresentado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) (Doc. 1.122 dos autos da ADI 7.222), citado no voto do ministro Barroso nos embargos de declaração, concluiu que a maioria dos entes públicos aplica uma carga horária de 30 horas semanais, enquanto vigoraria a de 38 para a iniciativa privada.

Na prática, para além de demonstrar preocupação em relação a qualidade do serviço de saúde e manutenção dos empregos dos próprios profissionais beneficiados, entendeu-se que as diferentes capacidades econômicas dos entes impactados deveria ser levada em consideração, com negociações regionais e adequadas as diversas realidades financeiras.

O STF adotou entendimento já manifestado no tema 1132, relacionado com os agentes de combate às endemias, devendo a observância ser em relação a remuneração global, e não apenas quanto ao vencimento base.

Todas essas premissas lançadas pelo STF mitigaram a implementação total do piso.

Portanto, analisando as considerações do ministro Barroso em conjunto com o voto vencedor do ministro Dias Toffoli na ADI 7.222, bem como as disposições constitucionais trazidas neste artigo, o que se pode concluir é que paulatinamente os pisos nacionais vêm sendo enfraquecidos, já que o STF implementou considerações que reduziram a sua efetividade.

Por exemplo, a diretriz que fez prevalecer o negociado sobre o legislado, enfatizando o poder das negociações coletivas, acabou retirando a quase totalidade da efetividade do referido piso.

É notório pois que a preocupação com as finanças públicas e privadas vem ganhando força perante a Corte Constitucional Brasileira, destacando-se ainda a autonomia financeira dos municípios, entes esses que acabaram vitoriosos com o posicionamento manifestado na ADI 7.222, já que foram beneficiados, na prática, com a diminuição dos impactos financeiros decorrentes do piso da enfermagem.

(*) Saulo Gonçalves Santos é advogado, procurador municipal, professor, especialista em Direito Tributário pelo Centro Universitário 7 de Setembro (Uni 7), mestre em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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