Omissão de socorro em voo: Consequências jurídicas para o médico
A presente pesquisa se dedica a analisar o crime de omissão de socorro previsto no art. 135 do Código Penal, sob a ótica do direito penal médico, na qual a omissão de socorro pode ser tipificada quando o profissional da medicina agir dolosamente, deixando de prestar a devida assistência ao paciente nas hipóteses descritas na legislação penal, especialmente em voos.
Além da lei supracitada, são inúmeras as previsões legais que impõem ao médico um dever de ação, elevando sua função de médico para um nível de garantidor de saúde e vida, não podendo, em regra, se afastar deste dever, salvo quando for impossível agir ou sua ação acarrete prejuízos a saúde do paciente ou sua própria saúde.
Para a confecção da presente pesquisa foram analisadas resoluções do Conselho Federal de Medicina, o Código Penal Brasileiro, artigos e pareceres doutrinários que abordam a temática apresentada.
Considerando o Código de Ética Médica (CEM), podemos extrair de seu texto que, no caso de urgência e de emergência em voos, o médico deve se apresentar imediatamente ao comissário de bordo para prestar a devida assistência médica, pois o art. 7º da supracitada resolução prevê que é vedado ao médico “Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria.” (Art. 7º, Código de Ética Médica)
Neste sentido é a interpretação do princípio fundamental de nº VII, também previsto no CEM, ipsi litteris:
O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. (Princípio fundamental de nº VII, Código de Ética Médica)
Ainda, o Código Penal aborda a omissão de socorro em seu artigo 135, a definindo como o ato de:
Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. (Artigo 135, Código Penal)
Fora isso, existe previsão da relevância da omissão para apuração da dimensão da responsabilidade no próprio Código Penal. Tal previsão está exposta no artigo 13, o qual define que, a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar tal resultado, por exemplo, quando o omitente possui a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância prevista em lei.
Conforme demonstram os dizeres do Código de Ética Médica e do Código Penal, o médico poderá exercer a sua profissão de forma livre, ou seja, com autonomia, não sendo obrigado a atuar, exceto em situações de urgência, emergência, ausência de outro médico ou se a recusa ocasionar em danos à saúde do paciente.
No entanto, ressalvadas as hipóteses permitidas, a recusa do médico em prestar socorro em voos pode ser definida como infração ética, nos termos da resolução citada, assim como, pode ser enquadrada no tipo penal do art. 135 do Código Penal, que tipifica o crime de omissão de socorro.
Isto porque eventuais pedidos de socorro em voos se enquadram nas hipóteses de situações de urgência e de emergência, hipótese em que o médico deve, em primeiro lugar, zelar pela saúde e vida, conforme compromisso prestado devido a profissão de médico.
Assim, podemos de forma simples dizer que, o médico é médico 24 horas por dia, pois independentemente do local em que esteja, caso exista a necessidade de atendimento médico, ele deve se apresentar e se prontificar a ajudar, prezando sempre pela saúde e vida.
No entanto, existem situações que eximem o profissional médico desta responsabilidade, podendo o mesmo, se recusar a atender, enquadrando tal recusa em motivo justificável, hipótese que poderá eximir o mesmo de uma possível responsabilização criminal, civil e administrativa.
Embora exista a premissa do médico precisar prestar o atendimento em caso de urgência e emergência, não se trata de algo absoluto, pois o médico também tem o direito de se divertir e de tirar férias.
Cada situação de urgência deverá ser analisada de forma individual para apurar se o modo de agir do médico no momento estava de acordo com a legislação vigente ou não, pois ele em raras exceções, pode se eximir da obrigação de socorro, visto que não é uma máquina, tampouco deve ser equiparado a um herói em prontidão.
Por exemplo, caso o médico esteja indo viajar de férias e acabe ingerindo bebida alcoólica durante o voo e ocorra uma intercorrência que necessite de um atendimento médico, ele não responderá se não for possível atender o paciente devido a seu estado de embriaguez. Isto porque não está em plantão, podendo se permitir a ingerir bebida alcoólica etc.
Tal hipótese pode eximir o profissional médico de qualquer responsabilização pois não há como ele prever que tal fato fosse ocorrer, não havendo como impor que em viagem de férias o médico fique em prontidão para socorrer alguém que eventualmente necessite.
Ademais, existem outras hipóteses que podem ser enquadradas como motivo justificável para recusa do atendimento pelo médico. Uma delas é a hipótese do profissional tomar medicamento para dormir durante o voo e se quer ouvir o chamado do comissário para prestar atendimento.
Tal omissão não poderá ser considerada como ilícita, pois para que ocorra o ilícito penal o médico deve ter consciência da recusa e o fazer de forma voluntária, ou seja, de maneira dolosa, assumindo as consequências de sua recusa.
Ainda, temos as seguintes situações que podem eximir o médico: possibilidade de algum dano ocorrer a sua própria saúde caso atue, ou ainda, caso haja falta de material necessário para a devida atuação ou até mesmo a ausência de condições necessárias para prestação do atendimento exigido.
Nestas situações o médico poderá se recusar a prestar tal atendimento, enquadrando tais recusas em motivos justos ou justificáveis, visto que, caso atue, pode agravar o quadro do paciente ou até mesmo colocar a sua própria vida em risco.
Assim temos que, a falta de atendimento médico em voo, pode ser revestida de caráter lícito ou ilícito. O que vai determinar em qual hipótese se enquadra a atitude do médico são as condições específicas do caso concreto.
O que se espera do médico é que tenha sempre uma conduta cautelosa e precavida e que, faça o que estiver em seu alcance e dentro das suas possibilidades, para garantir a saúde e a vida do paciente, pois o médico não pode ser tido como um profissional em prontidão 100% de seu tempo.
Assim, em eventual hipótese de o médico ser denunciado na prática do crime de omissão de socorro, as peculiaridades do caso concreto devem ser levadas em consideração para apuração da existência de crime ou não, posto que são inúmeras as possibilidades de recusa na prestação do atendimento de forma justificada.
Tanto o órgão administrativo como os juízes da esfera penal, ao se depararem com um caso de omissão de socorro em voos por médicos, devem levar em consideração como de fato se deu o chamado para o atendimento, as circunstâncias do caso concreto e a possibilidade de atuação do profissional.
Diante disso, conclui-se que ao médico não se deve imputar qualquer responsabilização sem que reste comprovado que ele tenha agido de fato com dolo, isto é, com a intenção de causar dano ao paciente ou até mesmo, quando assumir o risco de sua negativa na prestação do atendimento causar dano, ambas as atitudes tomadas de forma livre e consciente.
O crime de omissão de socorro não é absoluto e existem hipóteses previstas em lei onde o profissional estará desobrigado de agir ou situações em que sua recusa se enquadra como justificável diante das circunstâncias, pois o médico é um ser humano como todos os outros, com suas limitações e seus direitos.
(*) Vivian Maganhato Scarpelin é Membro da Comissão de Direito Médico e de Saúde.