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Pandemia e filologia: uma rima e algumas provocações

Antonio Ackel e Marcelo Módolo (*) | 17/09/2020 11:10

Pandemia não se restringe a um fenômeno exclusivamente biológico ou médico. A crise sanitária pela qual estamos passando tem trazido diversos questionamentos quanto ao nosso comportamento social. Não se cumprimenta mais com beijo ou aperto de mão. Agora, é, no máximo, toque de cotovelo e, para alguns, melhor se for um aceno de mão, a distância.

Enquanto as agências globais de saúde lutam para encontrar solução para a contenção da covid-19, as principais estratégias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla difundida por meio da língua inglesa) são: distanciamento social, higiene das mãos e uso de máscara. A demanda por desinfetantes, sabonetes e luvas tem se mostrado cada vez mais intensa, na medida em que lavar as mãos é considerada uma das precauções mais seguras contra a infecção.

Segundo Duan e Zuh (2020), as pandemias têm implicações psicossociais maiores em pessoas com predisposições a transtornos mentais, que são mais propensas a recaídas como autoadministração de medicamentos, estresse, baixa autoestima, suicídio.

De acordo com a recente pesquisa de Holmes et al. (2020), realizada com mais de 2 mil pessoas, uma das principais consequências adversas da pandemia da covid-19 tem sido provavelmente a solidão causada pelo isolamento social. Pacientes relataram ter experimentado uma ansiedade existencial geral, causada pela incerteza em torno da pandemia e uma sensação de estarem fora de controle, além de oprimidos. Nos resultados que obtiveram, várias doenças mentais foram mencionadas, com uma ligeira ênfase no transtorno obsessivo compulsivo (TOC), particularmente em referência a lavar as mãos e preocupações com a higiene.

Abaixo, o relato de um dos entrevistados:

“[…] descobri que este é um momento particularmente propenso a afetar minha saúde mental com as regras sobre lavar as mãos e tocar nas coisas, com o fardo de salvar a vida das pessoas. […] Estou preocupado com a forma como a pandemia pode piorar minha saúde mental e causar uma recaída do TOC a longo prazo”.[1]

Sabe-se que, no passado, a gripe espanhola levou milhões de pessoas à morte, no mundo[2]. Nesse período, no Rio de Janeiro, Carlos Chagas tomou a frente dos serviços de combate à epidemia e estabeleceu o regime de quarentena e isolamento (Goulart, 2005).

Nos anos que se seguiram, a psiquiatria passou a desempenhar papel de órgão regulador de políticas sociais, na busca da ordem e do progresso do Brasil, em que se discutiam questões ligadas a higiene mental, segregação social, internação compulsória, como métodos de desenvolvimento de uma sociedade livre de doenças e transtornos.

Vale lembrar que essas práticas psiquiátricas para organização social estavam relacionadas ao pensamento eugenista, definido por Galton[3] como “a ciência que lida com todas as influências que melhoram qualidades natas de uma raça”[4]. Melhorar, aqui, significa considerar apenas os bons comportamentos físicos e mentais de uma pessoa, que são influenciados por sua educação.

Nos idos do século XX, algumas pessoas começavam a demonstrar comportamentos exagerados com medo de se contaminar, no Brasil. A sociedade civil apoiava o Estado, e, assim, em consonância com os métodos profiláticos eugenistas, configurou-se um novo direito social para que o cidadão pudesse ser saudável (Couto, 1994).

A questão da higiene mental era um dos pontos centrais do pensamento profissional do médico e professor Antonio Carlos Pacheco e Silva, dirigente do Departamento de Assistência aos Psicopatas, pertencente ao Ministério da Educação e Saúde, criado por Getúlio Vargas. Foi também o fundador e administrador do Sanatório Pinel de São Paulo.

No Arquivo do Estado de São Paulo, é possível encontrar os documentos administrativos desse famoso hospital psiquiátrico, durante os anos em que pertenceu a Pacheco e Silva, de 1929 a 1944 (neste último ano, foi vendido ao governo do Estado de São Paulo). No fundo arquivístico, há aproximadamente 6.500 registros dos pacientes que por lá passaram.

Foram internados pelos mais diversos motivos: desde cansaço demasiado, tendências homossexuais, alcoolismo, estados depressivos até demonstração de interesse por assuntos que, na época, revelavam desejos de emancipação feminina, ou preocupação com ouvir vozes de pessoas que já tinham morrido. Dentre eles, destacam-se alguns que escreveram cartas durante o seu isolamento social – vide a transcrição de todas as cartas encontradas em Ackel (2019).

De forma semelhante ao pensamento obsessivo de higiene do entrevistado, anteriormente apresentado, o relato que se apresenta abaixo (transcrito da forma como se lê no original) é de uma mulher que foi internada por medo de se contaminar, ao encostar em objetos e pessoas, e que assim descreveu seu comportamento, em 1938:

“[…] Comecei desinfetando tudo com creolina e alcool, e tendo deixado o alcool fazia uso do sabão de soda como disinfectante. Bastava vér uma [pessoa] que deu a mão a um parente d’uma pessóa que soffria essa molestia, eu tinha horror, e desenfetava tudo. Cheguei at a ter medo de tudo e mesmo de pessoas da família, e até da roupa que vestia. Passava a ferro em tudo para desenfectár. E’ tambem desinfectáva com soda […]” (Doc. 2090).

Com relação aos recentes estudos de Holmes et al. (2020), há, hoje em dia, também um transtorno que se configura pela preocupação excessiva com a contaminação pela ação dos outros. Nos resultados, pode-se observar que um número menor de pessoas sugeriria o risco de serem contaminadas pela não compreensão das regras de distanciamento social de outras pessoas que dividem o mesmo espaço. A exemplo, abaixo transcreve-se o relato de uma delas:

“Eu trabalho em uma casa para pessoas com problemas de saúde mental, […] elas estão achando difícil entender e seguir as orientações que nos são dadas, e assim não estão lavando as mãos, não ficam dentro de casa e são constantemente lembradas do distanciamento social, que ou as incomoda ou as angustia. Então, estamos tendo dificuldade em apoiá-los a seguir as diretrizes, e elas estão colocando a si mesmas e à equipe em risco”[5].

Voltando aos pacientes do Pinel, outro exemplo que também mostra a preocupação pelo contágio pode ser lido na carta que um paciente escreveu em 1937 aos médicos do hospital, relatando que desconfiava que um outro paciente, com quem dividia o quarto, estivesse com uma doença contagiosa.

“[…] Já pela dissecação, a consequente pulverização e disseminação pelo vento do escarro e das goticulas purulentas, já pela locomoção do doente em meio improprio, já e principalmente pela absorção do ar saturado de virus, como seja penetrando-se no aposento do enfermo, transportando-se nas vestes e nos receptaculos o ar infeccioso, este a diffundir-se por sua vez nos ambientes e edificios contiguos ou proximos atravez dos vãos, atravez das frestas e até atravez dos liquidos, os quaes, em virtude do recambio com o do ar infecto, saturar-se-hão de germens por meio dos corpusculos de ar que todo liquido tambem contem, o portador de tão perigosa infecção deve ser apartado incontinenti a bem da saúde exposta a risco de tamanha gravidade […]” (Doc. 518).

De acordo com Mak et al. (2009), com o aumento do número de países afetados com o passar dos dias de isolamento, o tratamento de distúrbios mentais tem emergido como uma necessidade para estabilizar a qualidade de vida. Faz-se necessário avaliarmos nosso comportamento social, trazendo um senso de equilíbrio com relação à infecção.

Pode-se perceber que, mesmo há quase cem anos, como é o caso dos exemplos mostrados, as pessoas já demostravam seus receios e precauções sobre possíveis contaminações por superfícies. Assim como os registros dos entrevistados, feitos por Holmes et al. (2020), as cartas são expressões materiais do pensamento humano e revelam perspectivas de formas de organização da sociedade, na época em que foram produzidas.

Esse tipo de artefato histórico é objeto de estudo da filologia, que se encarrega de estabelecer a autenticidade de uma obra escrita com o intuito de recuperar e preservar a memória daquele saber. Além de restituir e reproduzir não somente os textos, preocupa-se também com toda a produção cultural de um indivíduo, de uma ideologia, de uma língua.

Tanto os fragmentos dos registros quase centenários, como os mais recentes, permitem refletir acerca de problematizações para além da ciência filológica. Propõem questionamentos sobre o que, na prática, esse tipo de documentação representou na época em que foi elaborado e o que pode representar no cenário pandêmico no qual nos vemos hoje. Desafiam a lançar olhares sobre as relações entre indivíduo e suas formas de comunicação e, especialmente, sobre a circunscrição histórica que permeou a produção desses registros, além do papel social do documento naquele determinado período da história.

Analisando os relatos das cartas antigas e da pesquisa atual, encontramos reafirmações ideológicas que, por meio de histórias do passado, justificam o presente e vislumbram o futuro. Claro que não se pretende aferir para que lado a pandemia atual nos levará. No entanto, mais uma vez, a filologia tem se mostrado aliada da história, na medida em que, por meio de registros documentais, fornece dados para repensarmos interpretações sobre o indivíduo e o meio.

(*) Antonio Ackel, mestre e doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq

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