Para onde caminha a Corte Suprema?
A autonomia e a independência do Poder Judiciário são conquistas civilizatórias recentes, sobretudo quando comparadas à vida pregressa dos Poderes Legislativo e Executivo (sécs. 18 e 19). Historicamente, os sistemas de Justiça no mundo vão ganhando força à medida que o Estado de Direito Democrático, o constitucionalismo e uma Carta de Direitos Fundamentais vão se (auto)fortalecendo na ordem jurídica de um país.
Este círculo virtuoso se intensifica quando se é almejada a plena efetivação do direito de acesso à Justiça – este, em si, um direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988. É um Poder Judiciário autônomo e independente que confere concretude e materialidade a um sistema de justiça encorpado o suficiente para jamais deixar de apreciar ameaça a qualquer direito.
Ocorre que a função jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário não esgota as funções desempenhadas pelos tribunais. O Judiciário do século XXI exerce inúmeras outras funções tão relevantes quanto à de solução de conflitos, aí incluídas (a) função de política judiciária – a qual atribui norte e sustentação ao sistema de justiça como um todo, e que no Brasil é liderada sobretudo pelo STF e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – e (b) outra função obrigatória, mas dotada de essencial simbologia: sempre fazer valer as garantias materiais e processuais a todos que recorrem ao Judiciário. Simbólica, pois como bem sustenta Boaventura de Sousa Santos, a inacessibilidade, a morosidade, o custo ou a impunidade, no limite, afetam a própria credibilidade simbólica da tutela judicial.
Existem também fenômenos contemporâneos como o ativismo judiciário e a judicialização da política, que acabam por conferir ao Judiciário perfis que lhes aproximam dos perfis funcionais mais característicos do Executivo e do Legislativo. Tudo isso é novo, e no dia a dia das Cortes esses processos vão sendo afinados e calibrados à luz das demandas sociais, as quais acabam por determinar a atuação do Judiciário em terrenos que ainda não lhe são totalmente conhecidos, ensejando por vezes uma hiperexposição e altas expectativas nem sempre muito salutares junto à sociedade. De outro lado, o próprio Judiciário por vezes se politiza demasiadamente.
Em tempos difíceis e de quase anomia em que vivemos – com acentuadas polarizações políticas perpetradas por um presidencialismo de confronto, predomínio de extremismos antidemocráticos, ditadura das redes sociais e fake news, entre tantas outras atrocidades – não seria de se espantar que é exatamente a credibilidade do Judiciário que acabaria por se tornar alvo preferencial de fortes ataques de atores políticos que acabam por exercer a “antipolítica” (AVRITZER, Leonardo. Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020).
No governo da antipolítica, seus protagonistas preferirão – como vêm preferindo – a via da imposição do poder, da falta de transparência e da ausência do devido processo legal.
Essas ações formam artilharia pesada contra o regime democrático, as liberdades públicas e as garantias fundamentais, desdemocratizando o exercício legítimo do poder, em provável rumo a uma autocracia.
Não se enganem os incautos: este plexo de condutas e atrocidades antidemocráticas nada tem de conservador. Trata-se de uma Agenda Reacionária que vai espraiando seus tentáculos, tentando erodir e corroer a muralha institucional que, ao final, é a única que pode conter arrombos arbitrários desta natureza: o STF.
Não por outro motivo, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt identificam cooptação, ocupação e enfraquecimento das Supremas Cortes como um receituário para a implantação de regimes totalitários e ditatoriais no mundo contemporâneo (2018: 77-87).
Portanto, eis as perguntas que merecem ser formuladas nesse cenário: o STF encontra-se suficientemente blindado pela ordem constitucional para não sucumbir aos ataques que lhe são desferidos pela antipolítica? Como a Corte pode se prevenir dos riscos gerados por essa onda antidemocrática que tomou de assalto o Brasil? O Supremo corre o risco de se tornar em si instituição mais conservadora e reacionária?
Instada a decidir sobre vários temas que formam a face antidemocrática e reacionária da agenda governamental, nos últimos dois anos, a Corte tomou medidas de defesa da ordem constitucional, formando incipiente, e ainda precária, Jurisprudência de Democracia Defensiva, compreendida como aquela que visa a salvaguardar e impedir que ações violentas ou baseadas em discursos de ódio – perpetrados por grupos extremistas de quaisquer matizes ideológicos – possam ameaçar ou vulnerabilizar a ordem constitucional e democrática de um país.
A meu ver, encaixa-se perfeitamente neste conceito o inquérito instaurado pelo STF para apuração de fake news e ataques frontais à instituição e seus ministros, tendo sido sua constitucionalidade devidamente reconhecida em decisão do Plenário da Corte, em 18 de junho de 2020.
Porém, as investidas contra a credibilidade institucional do STF não têm origem unicamente do lado externo. Partem, por vezes, do seu âmbito interno. Exemplificando: obrigada a decidir originariamente sobre processos que envolvem corrupção praticada por autoridades, agentes públicos e empresários de todos os partidos e matizes políticos –intensificada a partir do Mensalão e da Lava Jato – a Suprema Corte acabou por se desnudar demasiadamente perante a sociedade. Muitas vezes, com decisões erráticas ou altamente casuísticas, sobretudo porque vários ministros entendem que podem decidir de modo monocrático e isolado. Afrontaram decisões tomadas pelo Plenário e Turmas, dando origem a uma jurisprudência destoante de seus próprios precedentes e julgados colegiados. Tais posturas enfraquecem e desautorizam a instituição, chamuscando a sua credibilidade.
Portanto, soa mandatório ao STF desenvolver táticas de legítima defesa democrática da ordem constitucional, evitando posturas internas autofágicas, que podem servir de estopim e de munição para ações autocráticas desestabilizadoras, as quais podem desencadear tentativas de rupturas da sua institucionalidade, que nenhum bem fará ao Estado de Direito Democrático e à sociedade brasileira.
(*) Gustavo Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP