Podemos falar de gênero e sexualidade na escola?
A interrogação que intitula este texto é para tentar dar contorno a este problema: discutir, trabalhar gênero na escola, uma vez que, na atualidade, são constantes as ameaças e falácias que assombram as/os docentes e causam controvérsias acerca do que podemos e devemos trabalhar na escola.
Esse dilema emerge deste tempo marcado por movimentos distintos: de um lado, grupos marginalizados historicamente que lutam por representatividade, equidade e justiça social, tais como os movimentos negros, quilombolas, feministas, LGBTQIA+); de outro, temos neoconservadores que buscam a manutenção de uma estrutura social e econômica pautada em uma sociedade patriarcal, branca, heteronormativa.
A escola também se tornou espaço dessas disputas. Como efeito disso, nos últimos anos, tivemos documentos educacionais modificados, como o Plano Nacional de Educação (PNE-2014-20201), que retirou da redação final as expressões ‘gênero’ e ‘orientação sexual’. Isso, porém, não significa que não possam ser abordadas na escola questões de gênero e sexualidades, pois a invisibilidade desses temas não apaga tudo que já foi produzido e construído até então.
Se há algo que deva ser apagado, é a falaciosa ‘ideologia de gênero’ – termo que emerge do ceio da Igreja Católica, carregando ideias pejorativas com relação aos estudos científicos de gênero. Apesar disso, não podemos recuar. É preciso reafirmar a importância dos estudos de gênero e dos movimentos sociais que desestabilizam a sociedade patriarcal branca.
Assim, retomo brevemente que a consolidação do termo gênero como ferramenta analítica ampliou significativamente as discussões sobre esse tema não somente no âmbito acadêmico, mas em diferentes esferas sociais. Há na atualidade uma explosão de estudos de gênero: estudos feministas (negro, interseccional, transfeminismo), estudos sobre masculinidades, teoria queer – que implodem as barreiras morais e civis impostas pelo patriarcado branco. A própria noção de cidadania vem sendo alterada, como o reconhecimento jurídico de famílias diversas, por exemplo.
No campo da educação, são inúmeras as leis e os documentos curriculares que sustentam o trabalhado de gênero na escola, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), a Lei Maria da Penha (2006), as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais (2010). Ademais, na própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2018, mesmo com a supressão de ‘gênero’ da redação final desse documento, encontram-se muitas competências estipuladas a serem trabalhadas que visam o respeito à diversidade e o pluralismo de ideias e a valorização dos direitos humanos. Ainda, esse documento está alinhado à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que entre seus objetivos tem a superação das desigualdades de gênero.
Acrescento que é urgente tratar de gênero e sexualidade na escola, uma vez que há a amplificação dos discursos de ódio e o aumento estatístico das violências de gênero no Brasil. Em 2020, houve uma denúncia de violência contra mulher a cada 5 minutos. A maioria das vítimas são mulheres declaradas pardas que têm de 35 a 39 anos. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, sendo que muitas não chegam nem à velhice, visto que a média de idade de pessoas trans é de 35 anos.
Diante de tudo isso, na escola, além dos objetivos específicos de cada disciplina, também devemos educar para superação de desigualdades, educar para o acolhimento e respeito de todas, todos e todes. Historicamente, as relações de gênero produzem desigualdades e violências diversas na sociedade.
No interior das escolas ainda são muitas as práticas pedagógicas sexistas. O currículo ainda prioriza narrativas que trazem visões de mundo de homens brancos ocidentais. Nos livros de história, por exemplo, estão estampadas imagens de supostos heróis brancos. E as mulheres? E os homens negros, como são retratados na história? O ensino da língua portuguesa, tão valorizado nas avaliações em larga escala, é extremamente excludente, reflete as relações de saber e poder que constituem a sociedade. Um exemplo disso é o gênero masculino como genérico para se referir a um grupo de pessoas.
Os espaços das escolas também ensinam binarismos de gênero. Há marcações no chão das escolas endereçando o lugar de meninos e meninas na fila. Do mesmo modo, nas danças tradicionais apresentadas pelas turmas dos anos iniciais, como nas festas juninas – meninas e meninos têm seus papéis bem definidos. Nos recreios, a quadra fica com os guris, enquanto boa parte das gurias fica na pracinha ou sentadinha conversando. E qual é lugar de não binários na escola? Essa falta de espaço, de identificações e reconhecimentos das singularidades deve ser enfrentada seriamente nas escolas. Muitas pessoas trans não concluem o ensino fundamental, e entre os motivos estão a exclusão nos espaços escolares e o preconceito enfrentado na escola.
Ainda, é no interior dessas escolas que lidamos com frequentes casos de abuso sexual. Muitas vezes temos na escola crianças e adolescentes abusadas/os. Mesmo que essas situações sejam encaminhadas para outras entidades, a escola tem sido o primeiro espaço em que as vítimas conseguem relatar as violências. Há tantos outros casos que nem identificamos. É preciso, sim, falar de educação sexual. Essa discussão não pode ser trabalhada apenas nos anos finais, ensinando sobre o sistema reprodutivo. Está mais do que na hora de adequar o currículo à realidade e às demandas sociais.
Em suma, são muitas as situações de desigualdade, violências e omissão na escola. Os livros, os espaços escolares, as práticas pedagógicas são heteronormativos. No entanto, também é lá na escola o espaço para subverter as normas de gênero, pois nela as crianças podem ter acesso a outras narrativas sobre ser e estar no mundo. Que todas, todes e todos, enfim, possam encontrar na escola um espaço plural. Para tanto, podemos e devemos falar de gênero e sexualidade na escola, sim!
(*) Amanda Dória de Assis é doutoranda em Ciências do Movimento Humano.