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Por um Estado laico e por uma sociedade tolerante

Por Luiz Antônio Freitas de Almeida (*) | 30/05/2017 17:30

Muita polêmica tem sido gerada em relação a uma audiência pública para debater a implantação de projeto destinado a combater a evasão escolar e a indisciplina de alunos no Município de Dourados. Criticam-se a convocação dos responsáveis para assistir à palestra, ministrada pelo procurador de Justiça Sergio Fernando Raimundo Harfouche, e a oração feita por ele durante o evento.

Em relação à convocação, de autoria da promotora de Justiça Fabricia Barbosa de Lima, sem pretensão de fazer qualquer juízo de valor sobre o mérito, deixo um registro da minha experiência como promotor de Justiça da Infância durante seis anos, já que atualmente exerço outras atribuições dentro do Ministério Público: fiz várias palestras para pais sobre sua responsabilidade na criação e educação dos filhos, a pedido de diretores de escolas de Coxim, onde fiquei boa parte desses seis anos.

Os pais eram convidados pela direção de cada escola para as palestras. Toda vez acontecia a mesma coisa, segundo me informava a direção das escolas: a audiência da palestra era formada por pais zelosos e conscientes, já que os pais relapsos, cujos filhos mais tinham problema de indisciplina, nunca apareciam. Ou seja, pouco ou nenhum efeito consegui com palestras nesse formato.

Porém, quero ater-me ao que tem provocado, talvez, a maior polêmica: a suposta ofensa à laicidade do Estado no simples fato de o procurador de Justiça ter feito uma oração. Não estive na audiência pública.

Baseado no relato de um promotor de Justiça de Dourados que prestigiou o evento, a palestra teve duração de cerca de 1h30min e a oração ocorreu apenas nos 3 ou 4 minutos finais. Em um dos vídeos que circula na internet, o procurador, ao ser interpelado por alguém do público que mencionou que ele não estava numa igreja, pediu licença à plateia e perguntou se a maioria autorizava-o realizar uma oração, com um sonoro “sim” sendo ecoado no estádio.

Em seguida, o procurador pede licença a quem não acredita em Deus e segue na oração. É isso que fere a laicidade do Estado? De jeito algum.

O Brasil possui uma Constituição Federal que, em seu preâmbulo, reconhece que o texto constitucional era promulgado sob a proteção de Deus. Obviamente, o Estado é e deve ser laico, mas isso deve ser interpretado sem nenhum extremismo, apenas no sentido de que o Estado não pode e não deve impor uma determinada religião a ninguém nem perseguir quem professa uma fé diversa ou quem não acredita em entes metafísicos.

Mas a laicidade não é sinônimo de abolição da liberdade de expressão e de crença, ainda que num ambiente público. O procurador não impôs sua fé a ninguém, pois dirigiu sua oração àqueles presentes que concordaram com ela.
Quem era de outra religião ou não tinha nenhuma teve liberdade de não o acompanhar na prece. Nada no vídeo mostra que o procurador tenha ameaçado perseguir alguém que não orasse com ele.

Vale perguntar: deveremos rebatizar o município de São Paulo e outros tantos nomeados em homenagem a santos padroeiros ou a divindades ou entes de outras religiões, como Tupã (SP)? Deixará o Estado de proteger e preservar o patrimônio histórico de igrejas, de templos ou de monumentos culturais com alguma ligação religiosa – Cristo Redentor, por exemplo – porque ele remete a alguma religião em particular?

Deveremos proscrever feriados religiosos, lembrando que há feriados ligados com a fé cristã e feriados conectados a religiões de matrizes africanas? Perguntas iguais ou similares a essas, feitas para provocar uma reflexão da interpretação do conceito de laicidade do Estado, também constaram da fundamentação da sentença proferida pelo Judiciário Federal, que rejeitou ação civil pública proposta por procurador da República (Ministério Público Federal); a ação pretendia retirar das cédulas de dinheiro a expressão “Deus seja louvado”, com base na ideia de que isso mina a premissa de um Estado laico.

Estou inteiramente de acordo com a decisão judicial. A questão da laicidade do Estado foi também objeto de reflexão pela Corte Europeia de Direitos Humanos, cuja jurisdição não nos alcança, mas que pode ser lembrada por sua autoridade e pelo respeito devotado àquele organismo judicial. A Corte Europeia enfrentou uma suposta infração do dever de imparcialidade da Itália consistente na existência de crucifixos nas escolas italianas (Caso Lautsi e outros versus Itália).

Embora a Corte tenha fundamentado que a decisão italiana de não retirar crucifixos de escolas públicas estava sob sua margem de apreciação, ela termina por delimitar o que representaria o dever de imparcialidade, o que inclui a laicidade, e julgou favoravelmente ao Estado italiano, com o fundamento de que a liberdade de crença de qualquer um é passível de ser exercitada em ambientes públicos ou privados, como diz a Convenção Europeia de Direitos Humanos.

A Corte Europeia compreendeu que a presença de crucifixos não demonstra nenhuma forma de tolhimento da possibilidade de cada um exercitar sua fé ou crença conforme lhe aprouver. Alguém poderia objetar e dizer que a Corte teria feito uma distinção entre um símbolo passivo, como é o crucifixo, e “símbolos ativos” e querer enquadrar a fala do procurador como um símbolo ativo, logo, censurável.

Porém, ainda assim não penso dessa forma, sobretudo pelo restante da fundamentação do julgado. Em realidade, o que a Corte Europeia decidiu, e bem, é que a laicidade do Estado não serve de pretexto para renegar e matar a influência histórico-cultural que a religião católica tradicional exerceu e exerce na sociedade italiana.

O fundamento maior (ver o parágrafo 74 da decisão) para julgar a favor da Itália é a percepção da Corte Europeia de que não pode haver imposição de uma religião qualquer nem proibir que as pessoas sob sua autoridade estejam vedadas de discordar dessa religião, de negar Deus ou de seguir um credo diverso. Em suma, essas decisões judiciais mencionadas mostram que ferirá realmente a laicidade ou a imparcialidade do Estado se um agente público demonstrar a intolerância com a fé divergente ou com a falta de fé alheia.

Afirmar que uma oração curta – permitida pela maioria do público e sem ameaça a quem não a fizesse – transgride a laicidade do Estado, com o devido respeito, parece caminhar no mesmo sentido de proibir cidades com nomes de santos católicos ou de outras denominações religiosas; parece não tolerar a proteção de Deus dada no preâmbulo da nossa Constituição Federal e a tradição histórico-cultural compartilhada pela maioria da população brasileira.

(*) Luiz Antônio Freitas de Almeida é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul, mestre em direitos fundamentais e doutorando em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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